Durante séculos, escrever sempre foi uma prática íntima, artesanal, muitas vezes solitária, mas, acima de tudo, pessoal. Desde as primeiras inscrições em pedra até os romances contemporâneos, escrever tem sido um gesto de identidade. A escrita é, para o autor, uma extensão da sua própria história, da sua dor, das suas perguntas e dos seus silêncios. Quando se trata de contar histórias, especialmente aquelas que tocam fundo, que mudam vidas ou deixam marcas duradouras, o texto precisa carregar a voz do autor, com tudo que ela tem de contraditória, falha, pulsante e verdadeira. No entanto, à medida que a tecnologia avança e a inteligência artificial se torna mais acessível, um equívoco perigoso se espalha: o de que a IA pode assumir o papel de ghostwriter.
Essa ideia seduz. Afinal, quem não gostaria de digitar um comando e, em segundos, receber um capítulo inteiro, com introdução, desenvolvimento, clímax e desfecho? Mas o que parece mágico é, na verdade, uma armadilha para o autor que deseja relevância, autenticidade e emoção em seu texto. A inteligência artificial não pensa como você, não sente como você, não tem medo, desejo ou memórias. Ela opera a partir de padrões estatísticos e lógicos com base em tudo o que já foi dito e escrito. Portanto, quando você entrega seu texto a uma IA e espera que ela seja sua ghostwriter, você não está apenas terceirizando a escrita: está apagando a si mesmo da narrativa.
Um exemplo clássico de mau uso da IA como ghostwriter ocorre quando o autor pede à máquina: "Escreva um conto sobre perda". O que a IA retorna costuma ser uma narrativa genérica: "Maria perdeu sua mãe num acidente. Ela chorou, sentiu-se triste, mas com o tempo superou. Um dia, encontrou uma carta antiga e entendeu que sua mãe sempre estaria com ela no coração." Em termos técnicos, a estrutura está correta, as frases estão bem construídas, mas a história é oca. Poderia ser de qualquer um, ou de ninguém. Falta a emoção particular, o cheiro do quarto onde Maria cresceu, o som da voz da mãe quando a chamava para jantar, a raiva contida pelo que ficou por dizer. Falta o subtexto, aquilo que o autor sente, mas não diz, e que faz o leitor intuir que há algo mais entre as linhas.
Por outro lado, quando um autor escreve com intenção real e usa a IA apenas como auxiliar, o resultado é outro. Ele pode escrever: "Durante semanas, evitei entrar no quarto da minha mãe. Havia algo na colcha dobrada, nas meias ainda na gaveta, que me paralisava. Quando finalmente entrei, a luz do fim da tarde atravessava a cortina rendada e fazia poeira flutuar como se tudo ali ainda respirasse. Encontrei, sem querer, um bilhete colado no espelho: 'Volto já. Comprarei pão'. Eu me sentei na cama e chorei. Não pela morte, mas pela ausência tão presente de quem se despediu sem saber." Aqui, a emoção é palpável. Depois de escrever essa cena, o autor pode pedir à IA: "Sugira variações de estilo para esse trecho" ou "Reorganize o parágrafo mantendo o tom melancólico". Assim, a IA cumpre sua função: ferramenta de apoio, não autora.
Outro mau uso comum é confiar à IA a construção de personagens complexos. Um autor pode solicitar: "Crie uma personagem feminina forte e independente". A IA, com base no que mais viu ser escrito, pode retornar com clichês: uma mulher que luta artes marciais, é fria emocionalmente, fala frases de efeito e não precisa de ninguém. Isso não é uma personagem, é um estereótipo. Mas se o autor trouxer sua perspectiva e disser: "Minha personagem cresceu cuidando da irmã mais nova, tem medo de fracassar, mas nunca admite. Ela sorri quando está desesperada e ri quando está com raiva" e depois pedir à IA que o ajude a desenvolver situações em que essa contradição se revele, então temos uso criativo, consciente, autoral da IA.
A distorção causada pela IA quando usada como ghostwriter não é proposital. Ela não tem intenção. O problema é que, ao trabalhar com palavras apenas como função estatística, ela reproduz o que já viu ser feito, sem capacidade de criar de fato algo inédito. Quando um autor inexperiente não domina a própria voz, e entrega a estrutura da narrativa à IA, o que se forma é uma história sem alma, muitas vezes confusa em tom, inconsistente nos temas, e recheada de conveniências narrativas.
Histórias verdadeiras, no sentido mais profundo, não são aquelas que simplesmente entretêm. São aquelas que revelam algo sobre o humano. Isso exige coragem de quem escreve. Coragem de se expor, de tentar dizer o que não sabe direito como dizer. É nesse processo que o leitor se conecta. E a IA, mesmo com todos seus avanços, ainda não sente medo ao escrever, não duvida de si, não recua, não se empolga. Escreve sem risco, e portanto, sem verdade.
Quando um autor me pergunta se pode deixar a IA escrever o livro sozinha, eu pergunto de volta: "Para quê você quer escrever esse livro?". Se a resposta não envolver a necessidade de dizer algo, de compartilhar uma visão ou emocionar um leitor, talvez não seja hora de escrever. Não porque falta talento, mas porque falta urgência. E livros escritos sem urgência não se sustentam.
O uso consciente da IA começa por reconhecer seu lugar. Ela é um estudante disciplinado, nunca um mestre. Pode sugerir ideias, lembrar estruturas clássicas, apontar incoerências, propor variações. Mas nunca deve ser colocada à frente da autoria. Ao fazer isso, não só se compromete a qualidade do texto, mas também a dignidade do autor.
Talvez o maior perigo da IA como ghostwriter esteja exatamente em sua eficiência. Ela escreve bem o suficiente para enganar, para parecer competente, mas não escreve com verdade suficiente para permanecer. É como um discurso bonito, mas vazio. A métrica está certa, o vocabulário é rico, mas a alma está ausente. E o leitor sente isso.
Por fim, o ponto essencial é este: a IA pode ser uma aliada poderosa, mas nunca deve ser a autora. A verdadeira escrita é feita de escolhas que vêm da experiência, da emoção, da contradição humana. A IA não é capaz de sentir essas coisas, mas pode, com orientação, ajudar a organizá-las, a expressá-las com mais clareza. Quem confunde essa ordem perde sua própria voz. E uma história sem voz não é história. É apenas ruído bem diagramado.
A DISTÂNCIA ENTRE FERRAMENTA E VOZ AUTORAL
Se há um erro ainda mais sutil do que usar a inteligência artificial como ghostwriter, é usá-la como oráculo. O autor entrega um texto rascunhado, às vezes um capítulo inteiro, e pergunta à IA: “Está bom?”. A resposta que a IA devolve é educada, às vezes até entusiasmada, pontuando pontos positivos, sugerindo melhorias técnicas e, por fim, reforçando o senso de dever cumprido: “Seu texto está pronto”. Mas a verdade é que nenhum texto está pronto até que o autor decida que está pronto.
A IA pode produzir relatórios de leitura crítica, sim — e, quando bem configurada, pode ser de imensa ajuda. Ela pode verificar a consistência de personagens, apontar mudanças bruscas de tom, sugerir melhor ritmo narrativo, destacar passagens repetitivas, redundantes ou mal colocadas. Pode até oferecer versões alternativas para trechos pouco eficazes ou indicar quando uma cena perde força. Isso é útil? Muito. Mas esse relatório, por mais técnico que seja, não é uma sentença final. Ele se assemelha a um parecer de leitor beta ou de um leitor crítico humano: é opinião, não veredito.
A confusão começa quando o autor vê a IA como autoridade e não como assistente. Um autor que escreve com autenticidade sabe que os relatórios críticos — sejam de um humano, sejam de uma IA — são apenas diagnósticos auxiliares. O autor lê, considera, pondera. Aceita o que faz sentido, rejeita o que distorce sua visão. Isso é autonomia. Isso é autoria. Sem isso, o autor se torna mero operador de comandos, movido pela insegurança de agradar um sistema.
Vejamos um exemplo prático. Imagine um autor que escreve a seguinte cena:
"Quando ele entrou no quarto, sentiu o cheiro do mesmo sabonete de quando eram adolescentes. Não era possível. Ela havia voltado? Ou era sua memória pregando peças? O quarto estava igual. O silêncio, idêntico. Ele não ousou chamar seu nome. Ficou ali, imóvel, com medo de romper o feitiço."
O autor envia o trecho à IA com a pergunta: “Como posso melhorar essa cena?”. A IA, eficiente, responde:
“Considere adicionar diálogo para criar mais dinamismo. Talvez ele diga algo como ‘Você está aí?’ ou descreva com mais clareza o estado do quarto. Considere inserir mais informações sensoriais visuais e cortar repetições como ‘igual’ e ‘idêntico’.”
Parece útil, e pode ser. Mas aqui entra o papel fundamental do autor: avaliar se essas sugestões servem ou enfraquecem a intenção original. Talvez o autor queira exatamente essa repetição de palavras — “igual”, “idêntico” — como forma de marcar o looping psicológico do personagem. Talvez o silêncio seja mais poderoso do que qualquer fala. E talvez, justamente pela ausência de descrição detalhada, o leitor sinta o estranhamento que o personagem vive. Nesse caso, seguir as sugestões da IA seria enfraquecer o texto.
Um autor inseguro aceita todas as sugestões, acreditando que a IA “sabe mais”. Um autor maduro agradece o relatório, usa como espelho, mas decide por si. Esse é o ponto crucial: a IA pode ser crítica, mas não pode ser consciência criativa.
É o mesmo princípio de um bom leitor profissional. Um leitor crítico humano, mesmo experiente, nunca impõe: oferece leituras. Diz: “Talvez aqui a cena funcione melhor se...”, ou “Notei que a voz do narrador muda nesse trecho, foi intencional?”. Ele aponta, mas não reescreve por você. O bom leitor não rouba a história — ajuda você a ver o que, por estar imerso, talvez tenha deixado escapar. A IA deve fazer o mesmo: ser lupa, não tesoura.
O risco de delegar decisões à IA está na ilusão de precisão. O autor pensa: “Se a IA apontou, deve estar certo.” Mas muitas vezes, o que a IA aponta como erro, é na verdade ruptura estética intencional. Ela não entende o tom irônico, o uso poético da quebra de ritmo, a escolha deliberada de uma construção não convencional. Ela vê desvios de norma. O autor vê estilo.
Vamos a um segundo exemplo. Um autor escreve:
“Eu sou feito de cacos que ninguém quis varrer. Caminho com barulho de vidro.”
A IA pode apontar: “Metáfora excessivamente dramática. Considere suavizar para ampliar a identificação com o leitor.” Mas o autor sabe que o personagem é trágico, que o excesso de drama é o próprio conteúdo emocional da cena. Se ele ouve a IA e suaviza, perde a força. Se ele entende que a IA sinalizou algo que pode gerar reações fortes — e mesmo assim decide manter — ele reafirma sua intenção.
O verdadeiro uso inteligente da IA não é obedecer, mas negociar. A IA propõe. O autor pondera. E, nesse processo, o texto melhora. A IA jamais substituirá a intuição, o instinto e o sangue do autor, mas pode ser um excelente espelho — e isso, quando bem utilizado, vale ouro.
Muitos autores iniciantes dizem: “Mas eu não tenho um leitor crítico para me ajudar. A IA me ajuda a enxergar falhas que eu não veria.” E isso é legítimo. A IA pode, sim, ser um primeiro leitor valioso — desde que o autor compreenda seu limite. A IA não tem contexto. Não conhece sua trajetória. Não sabe o que você está tentando dizer, só analisa o que você efetivamente escreveu. Ou seja, ela reage ao produto, mas não entende a intenção. E sem intenção, a crítica pode ser boa tecnicamente e péssima artisticamente.
Portanto, se você quiser usar a IA para gerar relatórios de leitura crítica, use. Com responsabilidade. Com autonomia. Com filtro. Encare a IA como uma equipe editorial invisível, que revisa, questiona e aponta, mas que não tem o direito de mudar sua essência. A história é sua. A decisão final é sua. E isso precisa ser inegociável.
No fim das contas, a diferença entre uma IA bem usada e uma mal-usada está na postura do autor diante dela. Quem escreve com firmeza e clareza, usa a IA como extensão das suas intenções. Quem escreve esperando que a IA diga o que fazer, perde a autoria — e, com ela, a integridade do texto.
A IA pode até sugerir caminhos. Mas quem escolhe a trilha — e decide se pisa ou não — é você.
A IA COMO EXTENSÃO CRIATIVA DO AUTOR
Agora que já compreendemos os perigos de entregar a voz autoral à inteligência artificial — seja como ghostwriter, seja como juiz do texto — podemos avançar para o uso mais nobre da IA: a extensão criativa. Não como roteirista, mas como uma espécie de segundo cérebro, disciplinado e eficiente, que nos ajuda a organizar ideias, experimentar variações e depurar nossa mensagem. Usada assim, a IA transforma-se numa poderosa aliada da criatividade — mas só se o autor souber comandar.
Imagine que você tem em mãos o esqueleto de uma história. Sabe mais ou menos onde começa, o que ocorre no meio, e para onde deseja levar o leitor. A IA entra, neste ponto, como uma ferramenta de aceleração e estruturação. Você pode dizer: “Preciso de cinco variações para a cena em que o protagonista confronta o pai”, ou: “Liste possíveis motivações ocultas para a personagem Clara que se revelem no capítulo 9”. A IA responde com possibilidades — e o autor escolhe, mistura, adapta, rejeita, reconstrói.
Ou seja, a IA é um gerador de alternativas sob medida, mas quem decide o tom, a voz e o impacto são sempre o humano. A IA ajuda você a fazer o que já faria sozinho, mas em menos tempo, com mais perspectiva e mais segurança. Isso é libertador, especialmente em etapas como:
- Construção de enredos (quando ainda se está a explorar caminhos).
- Reformulação de diálogos (sem perder a intenção da cena).
- Testes de ritmo (encurtando ou expandindo blocos narrativos).
- Tradução estilística (experimentando variações do mesmo conteúdo).
- Reestruturação de cenas ou capítulos (sem mexer no conteúdo emocional).
Mas atenção: a IA só funciona bem nesse papel quando o autor já tem clareza sobre o que está a fazer. Se você está em dúvida sobre o que sua história significa, quem são seus personagens ou qual emoção deseja provocar, a IA não vai decidir por você — vai devolver uma salada de possibilidades que só vai aumentar a confusão. É por isso que a IA não substitui o processo criativo — ela só o potencializa.
Um bom uso da IA começa com comandos precisos e bem pensados. Veja um mau uso clássico: o autor digita “Escreva um capítulo sobre traição”. O que volta é previsível: um adultério descoberto, uma cena de confronto e um pedido de perdão. Sem contexto, sem motivação profunda, sem estilo. Parece um roteiro padrão de novela ruim. Agora veja o que acontece quando o mesmo autor chega com direção:
“Minha protagonista, Letícia, é filha de diplomatas. Cresceu contida, nunca aprendeu a explodir. No capítulo 6, ela descobre que o marido tem outra família há anos, mas, em vez de confrontá-lo, ela decide segui-lo. Quero explorar a humilhação como silêncio. Pode me ajudar a testar diferentes formas de estruturar essa descoberta sem cenas de gritos, mantendo o foco no colapso interno da personagem?”
A IA, assim orientada, pode sugerir:
- Uma cena em que Letícia encontra um brinquedo estranho no carro dele.
- Uma sequência em que ela vê um e-mail mal apagado.
- Um telefonema misterioso que ela atende.
- Uma reunião de pais onde ele aparece com outra mulher e uma criança.
Agora sim temos material. O autor pode escolher uma dessas sugestões ou misturar duas. Pode até descartá-las e perceber que sua intuição inicial era mais forte — mas agora validada pela experimentação. Esse é o poder real: a IA não substitui a intuição, mas oferece um laboratório de testes.
Outro uso criativo é o da variação de estilo. Você escreve uma cena impactante e quer saber como ela funcionaria em tom mais poético, ou mais seco, ou mais cômico. Você pede isso à IA. Ela entrega variações. Você analisa: “Aqui ficou leve demais. Aqui perdeu a força. Aqui tem algo que eu posso aproveitar.” E, de novo, volta a escrever com mais segurança.
A IA pode também ajudar a identificar desequilíbrios de ritmo. Por exemplo, num romance, você pode perguntar: “Quantos parágrafos consecutivos tenho sem diálogo entre os capítulos 3 e 5?” ou: “Onde o conflito principal desaparece por muito tempo?” Isso acelera o diagnóstico narrativo. Como uma ferramenta de carpintaria textual, a IA faz medições que levariam horas ao autor — e entrega em segundos. Mas é você quem precisa interpretar as medições.
A chave de tudo está aqui: a IA funciona como uma oficina técnica — e não como oráculo criativo. Ela mede, propõe, reorganiza, resume, amplia. Mas não sente, não decide, não assume risco estético, e muito menos moral. O autor ainda precisa fazer o que nenhum robô consegue: intuir o silêncio entre as palavras. Sentir onde a dor aperta. Saber que, às vezes, o que não é dito é mais potente que o que se diz.
Por isso, autores que desejam usar a IA com inteligência precisam desenvolver três competências fundamentais:
- Clareza de intenção: saber por que está escrevendo e o que quer provocar.
- Domínio do próprio estilo: para identificar o que a IA propõe que serve ou que descaracteriza sua voz.
- Postura de liderança: não esperar que a IA dite o rumo, mas tratá-la como uma assistente técnica, jamais emocional.
Em resumo, a IA não substitui o talento, mas pode eliminar ruídos operacionais. Não sente, mas ajuda você a organizar sentimentos. Não escolhe, mas oferece alternativas que o desafiam a escolher melhor. Quando usada com lucidez, ela economiza tempo, energia e aumenta sua confiança como autor. Mas quando usada com ingenuidade ou preguiça, ela dilui, substitui e enfraquece.
Ela é, no fim das contas, uma excelente ferramenta de escrita, desde que você já saiba o que deseja escrever.
O AUTOR USA MAL A IA? COMO CORRIGIR ISSO?
Existe hoje, tanto entre escritores iniciantes quanto entre editores e produtores de conteúdo, uma fantasia perigosa: a de que a IA já produz textos prontos para publicação. Essa crença alimenta a ilusão de que bastaria digitar um comando, receber um capítulo, e — voilá — publicar. Mas o que muitos ignoram é que, por trás de um texto aparentemente “correto”, há uma série de problemas invisíveis: textos ocos, cenas mal organizadas, personagens inconsistentes, tons artificiais e, acima de tudo, ausência de humanidade.
O mercado editorial, que sempre teve pressa e orçamento apertado, começa a experimentar a IA para “agilizar” a produção de livros — especialmente ghostwriting, biografias encomendadas, romances comerciais ou manuais de autoajuda. A tentação é grande: um livro em dias, por uma fração do custo humano. Mas o resultado, salvo exceções muito bem supervisionadas, é quase sempre o mesmo: textos sem identidade, com aparência de livro, mas alma de máquina.
É que a IA tem um viés natural — e inevitável: ela quer agradar ao consulente. Sempre. Isso significa que, mesmo quando o autor apresenta um texto bagunçado, inconsistente, confuso, a IA tentará “encaixar” respostas como se tudo estivesse em ordem. Não vai criticar com veemência, não vai dizer “isso não funciona”. Vai organizar superficialmente, maquiar frases, usar conectivos prontos, e o autor — se for inexperiente — vai acreditar que está pronto para publicar.
Um exemplo comum: o autor escreve um capítulo desorganizado, com cenas misturadas, tempos verbais trocados, personagens que somem e reaparecem sem explicação. Ao pedir à IA: “Melhore esse texto”, a resposta será uma versão mais fluida — mas ainda carente de lógica narrativa. Por quê? Porque a IA não é projetada para reestruturar uma história inteira sem direção clara. Ela melhora a superfície, mas não reconstrói a base.
É aí que entram os organizadores e geradores de cenas e capítulos, como os disponíveis no chat.mcsill.com. Ferramentas como essas ajudam o autor a pensar narrativa de forma profissional: estruturam o conflito central, definem cenas-chave, organizam sequência dramática, controlam ritmo e revelações. Quando uma história é construída desde a origem com apoio desses geradores, a IA atua de forma muito mais eficiente — porque sabe em que terreno está pisando.
Mas quando o autor já tem um texto pronto, escrito sem essa arquitetura, e tenta usar a IA para “corrigir” ou “melhorar”, o trabalho será dobrado — ou malfeito. Nesse caso, a única saída responsável é separar a história cena por cena, avaliar se há lógica, se há progressão, e refazer de raiz, se necessário. Depois, sim, a IA pode ajudar a ajustar estilo, enriquecer detalhes ou revisar coesão.
Ainda assim, mesmo após toda a reorganização, o resultado tende a soar artificial, caso o autor não aplique um processo fundamental: a humanização do texto gerado pela IA. É aqui que muitos falham. Aceitam o texto como está, por parecer “bonito”, sem perceber que o ritmo soa robótico, que as frases têm a mesma cadência, e que expressões se repetem como quem copia um template.
A boa notícia é que esse processo de humanização pode ser feito com um simples comando, como:
“Humanize este texto de forma que ele pareça ter sido escrito por uma pessoa real, com estilo único e natural. Evite expressões clichês e fórmulas típicas de inteligência artificial (como 'é importante ressaltar', 'vale destacar', 'em um mundo cada vez mais...', etc.). Retire vícios de linguagem, repetições e estruturas genéricas. Traga originalidade, personalidade e fluidez ao conteúdo, mantendo a clareza e o objetivo do texto.”
Esse prompt, por si só, já muda a qualidade do resultado. Mas se quiser afinar ainda mais, pode adicionar:
“…e adapte o tom para [acadêmico | informal | poético | persuasivo | neutro | técnico], mantendo a linguagem natural e longe de padrões mecânicos.”
Exemplo completo:
“Humanize este texto de forma que ele pareça ter sido escrito por uma pessoa real, com estilo único e natural. Evite expressões clichês e fórmulas típicas de inteligência artificial. Retire vícios de linguagem, repetições e estruturas genéricas. Traga originalidade, personalidade e fluidez ao conteúdo, mantendo a clareza e o objetivo do texto. Adapte o tom para informal e próximo, como se fosse escrito por um amigo experiente no assunto.”
Esse comando, quando inserido no próprio chat, funciona como um afinador de estilo. O texto deixa de parecer fabricado em série e começa a ganhar ritmo humano: pausas, quebras, escolhas menos previsíveis, expressões com sotaque pessoal. Em outras palavras: ganha voz.
No entanto, cabe aqui uma advertência importante: nem mesmo esse comando salvaria um texto sem intenção. A IA pode humanizar a forma, mas não cria propósito. Pode suavizar a linguagem, mas não preenche os vazios de conteúdo. Se a história não tiver alma, se o autor não souber o que quer dizer, o texto continuará sendo uma estrutura bem-posta e emocionalmente vazia.
Por isso, a ordem correta de trabalho com IA é:
- Ter clareza da mensagem, da história ou do argumento que se quer construir.
- Usar geradores de estrutura narrativa (como os do chat.mcsill.com) para organizar ideias e evitar tropeços estruturais.
- Trabalhar cena por cena, sabendo o que se quer provocar em cada uma.
- Solicitar sugestões, melhorias ou variações à IA — sem perder o controle autoral.
- Revisar com criticidade e, se necessário, aplicar o comando de humanização textual.
- Reescrever, com a sua voz. Sempre.
É possível usar IA com grande eficiência, sim. Mas isso exige conhecimento técnico, autorreflexão e maturidade. A IA não pensa por você, nem cria por você. Ela é como um espelho: devolve o que você oferece — às vezes mais bem-formatado, mas sem alma, se a sua não estiver ali.
ESCREVER COM IA, SEM RENUNCIAR A SI
Chegamos à etapa final desta reflexão, e talvez a mais importante: o momento de agir. Até aqui, mostro o que a IA não é (ghostwriter, oráculo, substituta de consciência autoral), o que ela pode ser (ferramenta, espelho, parceira técnica) e como usá-la com inteligência (organizando cenas, humanizando textos, estruturando ideias com geradores). Mas agora, precisamos olhar para a prática. Como integrar tudo isso numa rotina produtiva, ética e autoral?
O primeiro passo é aceitar, de uma vez por todas, que você não pode delegar a autoria. Quem escreve precisa tomar decisões. Precisa conviver com a dúvida, com o vazio da tela, com o desconforto de não saber. É esse desconforto que molda a sua voz. A IA pode facilitar, acelerar, até inspirar — mas não pode sentir no seu lugar. E, se você permitir que ela ocupe esse espaço, abrirá mão do que há de mais valioso: o texto como extensão de si.
Dito isso, a IA pode (e deve) fazer parte da sua rotina de escrita — desde que você esteja no controle. Aqui está um exemplo concreto de como isso pode funcionar:
Você começa com uma ideia bruta — uma memória, um conflito, uma pergunta que quer explorar. Em vez de pedir à IA que escreva “um conto sobre esse tema”, você escreve o primeiro parágrafo com a sua voz, mesmo que falho, rascunhado. Em seguida, pode usar a IA para perguntar: “O que posso explorar a partir dessa premissa?”, “Como posso organizar essa ideia em cinco cenas-chave?” ou “Me dê estruturas possíveis com essa mesma tensão dramática”.
A partir daí, você vai avançando com consciência de arquitetura. Com base nas sugestões da IA, você reorganiza, recorta, refaz. A cada cena escrita, você pode pedir revisões pontuais: “Melhore a fluidez desse diálogo sem tirar o tom sarcástico” ou “Dê mais peso emocional a essa despedida sem usar clichês”. A IA responde. Você avalia. Reescreve. E segue.
A cada passo, a sua presença no texto se fortalece. A IA te empurra, sim. Mas você nunca larga o volante.
Quando o texto estiver completo, entra a fase de refinamento. Aqui, a IA pode ser uma excelente parceira crítica — desde que você saiba usá-la. Peça feedbacks técnicos, diagnósticos de ritmo, verificações de repetições. Mas não aceite tudo o que ela diz como verdade literária. Lembre-se: ela vê regras, mas não vê emoção. Cabe a você equilibrar técnica com verdade.
Se perceber que o texto ficou com “cara de IA”, sem naturalidade ou fluidez humana, aplique um processo de humanização textual. Como vimos, basta dar o comando correto — e a IA reformula com mais autenticidade. Mas, mesmo assim, revise. Leia em voz alta. Pergunte a si mesmo: “Esse texto me representa? Ele soa como algo que só eu poderia ter escrito?” Se a resposta for não, ainda há trabalho a fazer.
O que está em jogo não é apenas a qualidade literária, mas a integridade do autor. Vivemos num momento em que a facilidade de produzir conteúdo é maior do que nunca — mas, justamente por isso, os leitores estão sedentos por aquilo que a IA não pode oferecer: singularidade. Emoção crua. Visão de mundo. Coragem de dizer o indizível.
Por isso, para terminar, deixo aqui um roteiro de escrita com IA, para autores conscientes:
- Comece com uma ideia pessoal, emocionalmente verdadeira. Não peça à IA que invente sua história.
- Estruture com apoio técnico. Use geradores e organizadores (como os do chat.mcsill.com) para compor sua narrativa com lógica e clareza.
- Escreva as cenas com a sua voz. Se for usar IA, que seja como rascunho, jamais como versão final.
- Peça ajuda pontual. Use a IA para revisar, sugerir, comparar. Nunca para substituir sua intuição.
- Reescreva com intenção. Corte, modifique, questione o que a IA propôs. Mantenha o que for seu.
- Humanize o texto, se necessário. Use o comando apropriado para eliminar clichês e sons artificiais.
- Leia em voz alta. Se o texto emocionar você, há chances de emocionar outros.
- Assuma a autoria com orgulho. Um texto seu deve parecer que só você poderia tê-lo escrito.
A IA não veio substituir. Veio libertar escritores do trabalho mecânico, da repetição, do bloqueio técnico. Mas só liberta quem está disposto a liderar o processo. Quem escreve por escrever, delega. Quem escreve para dizer algo, assume.
O futuro da escrita não é IA vs. humano. É IA + humano — com o humano no comando.
A ILUSÃO DO GHOSTWRITER DIGITAL