Muito além da fantasia infantil, Alice no País das Maravilhas é um dos livros mais subversivos da literatura — e também um dos mais úteis para quem quer escrever histórias criativas, ousadas e memoráveis. Neste ensaio em nove partes, mergulhamos nas técnicas narrativas e estilísticas de Lewis Carroll, revelando como sua obra funciona como um verdadeiro manual disfarçado de escrita criativa. Do absurdo lógico à crítica social camuflada, da arquitetura espiral da trama à construção de frases que respiram pensamento, Alice oferece um arsenal de recursos para autores contemporâneos que desejam romper com fórmulas previsíveis e criar universos que fascinam, perturbam e permanecem. Se você escreve — ou deseja escrever — algo que fuja do comum e encante por sua originalidade, siga a queda livre desta leitura: há um País das Maravilhas esperando ser redescoberto por dentro da sua própria voz.
Entre as páginas caleidoscópicas de Alice no País das Maravilhas, esconde-se uma das maiores lições de escrita criativa já dadas — mas poucos a reconhecem. Lewis Carroll, com sua aparência de reverendo respeitável e professor de lógica em Oxford, produziu uma obra que não apenas rompe com os moldes narrativos tradicionais da sua época, mas também oferece um verdadeiro manifesto disfarçado sobre o poder da imaginação literária quando se liberta do tirano chamado senso comum. É sobre isso que trata esta primeira parte: o gesto inaugural de Carroll — o gesto de romper.
A premissa de Alice é ao mesmo tempo simples e radical: uma menina entediada vê um coelho de colete e relógio, decide segui-lo, e, de repente, cai por um buraco para dentro de um mundo onde as regras da realidade já não se aplicam. Até aqui, poderia ser o começo de uma fábula qualquer. Mas o que Carroll faz a seguir não é nos conduzir de volta a uma moral. Ao contrário, ele abandona a lógica utilitária da fábula tradicional — com sua clara lição de certo ou errado — e nos arrasta para um lugar onde o absurdo tem vida própria. Não se trata de um erro a ser corrigido, mas de uma realidade alternativa a ser explorada.
Para o escritor contemporâneo, essa decisão tem implicações profundas. Estamos habituados — quase domesticados — por uma narrativa que deve “fazer sentido”, personagens que “evoluem” de maneira previsível, cenários que servem apenas como pano de fundo e conflitos que seguem o manual da dramaturgia clássica. Carroll, em 1865, já se insurgia contra essa lógica. Em vez de construir um arco dramático com começo, meio e fim coerente, ele nos oferece uma espiral de eventos desconexos em aparência, mas que, examinados com atenção, revelam a estrutura própria dos sonhos — ou, mais precisamente, da linguagem antes de ser domesticada.
O escritor que deseja ousar hoje pode aprender com esse gesto. O primeiro passo não é escrever o impossível — é aceitar o impossível como ponto de partida legítimo. Carroll não explica como o buraco no chão leva a um corredor cheio de portas que parecem se multiplicar. Ele tampouco justifica por que uma poção pode fazer Alice encolher, ou um bolo a faz crescer. O que interessa a ele não é a verossimilhança, mas a liberdade de seguir uma lógica interna — a lógica da experiência subjetiva, do pensamento fragmentado, do imaginário solto das amarras da realidade.
Na prática, isso significa abrir mão de certas amarras estruturais logo na concepção da história. A pergunta “isso faz sentido?” deve ser substituída por “isso é fiel à lógica interna desse mundo que estou criando?”. Alice cresce e encolhe porque sua identidade está em crise, não porque há coerência química entre bolo e poção. O coelho corre porque representa a pressa do mundo adulto, não porque precisa realmente chegar a algum lugar. Cada elemento do enredo, por mais nonsense que pareça, serve à verdade emocional e simbólica da protagonista.
Essa é a primeira grande técnica que o escritor pode extrair de Carroll: construir um universo onde o nonsense seja, paradoxalmente, carregado de sentido. O segredo está em tratar o impossível com naturalidade. Veja como Carroll descreve, por exemplo, a queda de Alice pelo buraco do coelho: ela desce lentamente, observa prateleiras e mapas nas paredes do túnel, pega um pote de geleia, e pensa — com a calma de quem espera o chá — se, ao chegar ao fundo, fará uma reverência educada. Esse tom doméstico aplicado ao surreal gera um efeito poderoso: não é o mundo que é absurdo, é nossa lógica habitual que talvez seja estreita demais para compreendê-lo.
Narrar o impossível com sobriedade é um gesto que perturba. E é aqui que Carroll se mostra mestre. A maioria dos escritores, quando ousa no conteúdo, sente a necessidade de avisar o leitor — com frases como “você não vai acreditar no que vem a seguir” ou com descrições saturadas. Carroll faz o contrário. Ele deixa que o absurdo se revele em silêncio, com a fluidez de um acontecimento trivial. Isso ensina uma lição essencial: o tom é o que garante a coesão, não a coerência factual.
Podemos, portanto, transpor essa técnica para outras histórias. Suponha que você deseje criar um personagem que entra num café onde todos os fregueses falam por enigmas. Um leitor conservador exigiria uma explicação: é uma sociedade secreta? Um código? Um sonho? Mas, seguindo a lição de Carroll, bastaria tratar esse evento como uma experiência legítima do personagem, sem explicação imediata, deixando que o desconforto do leitor se transforme, gradualmente, em fascínio. A partir daí, o universo estranho começa a parecer mais verdadeiro que o mundo conhecido — e essa inversão é, talvez, o ápice da criação literária.
É importante notar que Carroll não está apenas brincando com palavras. Sua ousadia é radical porque confronta diretamente a ideia de progresso narrativo. A aventura de Alice não a “leva a crescer” como num romance de formação convencional. Ela não vence obstáculos para tornar-se alguém melhor. Ela apenas vive, pensa, se espanta, erra, ri e continua — como uma criança faria. A noção de que toda história precisa carregar uma transformação clara da personagem é, aqui, desfeita com elegância. A lição é clara para quem escreve: às vezes, fazer a personagem mergulhar no absurdo sem um final transformador é mais verdadeiro do que empurrá-la para uma resolução moral qualquer.
Mais do que isso: Carroll convida o leitor a se perder. E essa é uma atitude corajosa para qualquer autor. A literatura moderna passou a valorizar a clareza, a progressão lógica, o desfecho. Mas há beleza — e potência — em criar espaços onde o leitor se sinta desorientado. Porque, no fundo, a desorientação é uma das poucas experiências universais da vida humana. Alice pergunta constantemente “quem sou eu?”, “para onde estou indo?”, “por que isso está acontecendo?”. Essas perguntas ecoam muito além do universo infantil. São as mesmas que adultos se fazem em momentos de ruptura, de luto, de mudança.
A ousadia de Carroll, portanto, não é apenas estilística. É existencial. Ele inaugura um tipo de narrativa onde o sentido não está na resposta, mas na pergunta que permanece vibrando ao fim de cada capítulo. E isso é, talvez, o maior presente que um escritor pode oferecer ao seu leitor: a liberdade de pensar, sentir e criar a partir da dúvida.
Para aplicar essa técnica à própria escrita, vale experimentar escrever cenas que não têm justificativa lógica imediata. Comece com imagens, situações ou diálogos que parecem descolados do mundo conhecido. Dê-lhes tempo. Deixe que os personagens reajam com naturalidade, mesmo diante do insólito. Evite a tentação de explicar demais. Observe como o próprio texto começa a criar uma coerência interna. Essa é a mecânica do devaneio literário: não um caos, mas uma outra forma de ordem.
Lewis Carroll, ao criar Alice, não fugiu da realidade — ele escavou camadas mais profundas dela. Ao abandonar o senso comum, ele nos lembrou que a lógica, por vezes, é uma prisão estreita. E que a literatura tem o poder de soltar os grilhões da previsibilidade. Essa é a primeira lição. Nos capítulos seguintes, exploraremos como ele faz isso em estrutura, estilo, ambientação e construção de personagens — e como cada um desses elementos pode enriquecer profundamente a sua escrita.
Mas lembre-se, já de início: se a sua história começa com um coelho de relógio falando sozinho, talvez você esteja no caminho certo.
A espiral narrativa: como perder-se é uma forma de avançar
Entre as muitas revoluções silenciosas promovidas por Alice no País das Maravilhas, talvez nenhuma seja mais desestabilizadora — e mais didática para o escritor contemporâneo — do que a sua maneira de lidar com o tempo narrativo. Ao contrário da tradição aristotélica que domina a ficção ocidental há séculos — e que exige começo, meio e fim, com um arco de tensão crescente e resolução catártica — Lewis Carroll propõe uma arquitetura em espiral. Em Alice, não há clímax. Não há meta. Não há sequer promessa de direção. O que existe é deslocamento contínuo: o movimento de quem se afasta para dentro.
Para o leitor acostumado com tramas bem amarradas, esse tipo de estrutura pode soar como dispersão. Mas para o escritor atento, o que Carroll oferece é uma lição sofisticada de composição: nem toda história precisa caminhar para um ponto de chegada. Às vezes, o valor narrativo está em acompanhar uma trajetória que se reinventa a cada passo — como se cada nova cena substituísse o anterior em importância, ao invés de obedecer a uma lógica hierárquica de causa e consequência.
A metáfora da espiral é precisa aqui. Alice não avança rumo a um objetivo — ela mergulha. E esse mergulho é feito de camadas. Cada novo encontro — com o Gato de Cheshire, a Lagarta, o Chapeleiro, a Rainha de Copas — parece, à primeira vista, mais um episódio episódico. Mas se olharmos com atenção, notaremos que cada um desses encontros reorganiza o sentido de mundo da protagonista. A narrativa não progride em linha reta, mas em círculos que se aprofundam. Ao final da história, Alice continua sendo, em certa medida, a mesma — mas o mundo ao redor dela se fragmentou a tal ponto que já não pode mais ser interpretado da mesma maneira.
É justamente nessa dinâmica que Carroll nos ensina algo fundamental sobre ritmo. Muitos autores se preocupam com o “andamento” da narrativa — e com razão. Mas confundem ritmo com velocidade. Carroll mostra que o ritmo mais poderoso não é o que corre, e sim o que pulsa. Em Alice, esse pulso é dado pelo choque entre estabilidade e desorientação. Uma cena aparentemente serena — como o chá com o Chapeleiro — rapidamente descamba para o grotesco, o ilógico, o cômico. E antes que o leitor se canse, a cena desaparece. Um novo cenário se impõe. Um novo jogo começa. Assim, o livro se movimenta como uma partitura de jazz: o tema é continuamente desconstruído, mas nunca abandonado.
Esse modo de estruturar o texto tem implicações práticas para quem escreve. Primeiramente, exige do autor a coragem de desapegar-se do controle absoluto. Uma narrativa espiralada só funciona quando os próprios personagens são soltos o suficiente para levar a história adiante sem mapa. Alice não é uma heroína clássica: ela não tem missão nem mentor, e muito menos um vilão a ser derrotado. Ela é, antes de tudo, uma viajante — e sua função principal é reagir. Isso não diminui seu protagonismo; ao contrário, amplifica. Porque, ao reagir, ela revela. Cada diálogo que trava com uma criatura nonsense funciona como um espelho invertido, no qual vemos tanto a fragilidade das certezas adultas quanto a persistência da lucidez infantil.
Na escrita contemporânea, onde muitas vezes se espera que tudo tenha propósito e resolução, esse gesto é quase revolucionário. Permitir que sua personagem caminhe por episódios autônomos, sem exigir que cada cena “sirva” a uma macroestrutura, pode ser libertador. É claro que isso não significa escrever ao acaso. A espiral de Carroll não é desorganizada — ela é orgânica. Cada capítulo de Alice parece responder a uma necessidade interna do próprio texto, não a uma exigência externa de coerência narrativa.
Há um exemplo notável dessa técnica no momento em que Alice entra no jardim da Rainha de Copas. O leitor, habituado a um certo crescendo narrativo, imagina que ali, finalmente, encontrará um clímax. Afinal, desde o início do livro se fala de um jardim encantado que parece inacessível. E sim, há tensão: a Rainha é ameaçadora, há julgamentos absurdos, há ordens de execução. Mas, de repente, tudo se desfaz. Como num sonho que não se sustenta, o julgamento entra em colapso, Alice cresce de tamanho, desobedece todas as regras — e acorda.
Essa “anti-conclusão” é uma aula de estrutura. Carroll recusa a necessidade de um desfecho triunfal. Ele sugere que toda tentativa de resolver logicamente o nonsense é em si mesma uma tolice — e, por isso, a saída só pode ser abrupta. Acordar é o único gesto possível diante de um mundo que insiste em não fazer sentido. A lição aqui, para o escritor, é precisa: às vezes, a melhor forma de terminar uma história é desamarrá-la.
Outro ponto notável na estrutura de Alice é a alternância entre eventos de alta tensão absurda e cenas quase contemplativas. Depois de uma sequência intensa — como a partida de croqué com flamingos e ouriços — Carroll intercala momentos mais lentos, como o diálogo com a Tartaruga Falsa. Essa cadência de intensidade é crucial para manter o leitor engajado sem exaustão. Funciona como a respiração de um texto: inspirar, expirar. O escritor pode aprender aqui a organizar seu material não apenas por importância de conteúdo, mas por ressonância emocional. Alternar cenas densas com pausas poéticas, absurdos com ternura, ação com reflexão — isso cria um ritmo que não cansa, mas hipnotiza.
Carroll também utiliza o que poderíamos chamar de “ciclos internos” dentro da narrativa. Há estruturas recorrentes — como os desafios de linguagem, os enigmas sem resposta, os testes de identidade — que se repetem com variações. Isso cria no leitor a sensação de familiaridade dentro do caos. Mesmo sem saber o que virá, ele reconhece a música. E essa repetição com desvio — essa técnica de eco — é algo que pode ser aplicado com eficácia em qualquer narrativa mais livre. Um escritor que decide estruturar seu romance por episódios autônomos pode criar vínculos simbólicos entre eles por meio de imagens que se repetem, temas que retornam, ou mesmo personagens que mudam de função, como peças num tabuleiro circular.
Esse método exige atenção, claro. Não basta repetir por repetir. É preciso usar a repetição como um instrumento de tensão. Veja o Gato de Cheshire: ele aparece, desaparece, e aparece de novo — cada vez mais fragmentado. Primeiro o corpo, depois o riso. Depois o riso sem corpo. Essa devolução fragmentada da mesma figura provoca no leitor um estranhamento cumulativo. A repetição não resolve — ela intensifica. Essa é a espiral: não é andar em círculos, é girar e descer.
Em tempos de storytelling didático, onde a estrutura clássica de três atos reina absoluta nos cursos de roteiro, a espiral de Carroll oferece um contraponto necessário. Ela ensina que contar uma história não é necessariamente conduzir o leitor a um destino — mas sim levá-lo a atravessar estados. Alice no País das Maravilhas não nos leva a uma resposta, mas nos transforma pela experiência.
Ao final do livro, Alice desperta — não necessariamente mais sábia, mas alterada. E essa é a grande promessa de uma estrutura espiralada: não formar, mas deformar o leitor. Tirar-lhe a rigidez do real. Fazê-lo cair num buraco. E, enquanto ele cai, dar-lhe mapas inúteis, criaturas improváveis, lógicas estilhaçadas — até que ele entenda, como Alice, que crescer e encolher são formas legítimas de existir.
O escritor que quiser experimentar essa arquitetura deve, portanto, fazer um pacto com o incerto. Não planejar o final antes de ouvir o ritmo do texto. Não impor à história uma direção, mas deixar que ela a revele por fricção. Escrever não como quem constrói uma ponte, mas como quem desce um rio. Ser Alice. Ser o buraco. Ser o sonho.
E, ao fim, aceitar que talvez escrever bem não seja levar o leitor a um destino previsível — mas devolvê-lo ao mundo com olhos estranhamente novos.
A filosofia do absurdo: como dizer tudo sem afirmar nada
À primeira vista, Alice no País das Maravilhas parece escapar à filosofia. É um livro onde a lógica colapsa, as perguntas não têm resposta e os personagens falam por enigmas. Mas seria um erro tratá-lo apenas como uma farsa caprichosa. O nonsense de Lewis Carroll, longe de ser gratuito, é deliberadamente construído para dizer o indizível — para refletir sobre os limites do saber, a fragilidade da identidade e a natureza vacilante da linguagem. No coração do absurdo, pulsa uma filosofia aguda. E o escritor que souber escutá-la encontrará não só alimento intelectual, mas uma poderosa ferramenta estética.
Carroll, matemático e lógico, sabia perfeitamente como funciona o raciocínio dedutivo. O que ele faz, em Alice, é pôr esse raciocínio à prova — inverter suas premissas, colapsar suas conclusões, zombar de sua pretensão de verdade. O absurdo, nesse contexto, não é ignorância: é um instrumento. Ele serve para mostrar, com elegância e ironia, que a razão humana não é capaz de dar conta da experiência inteira. Em lugar de explicar o mundo, Alice nos convida a habitá-lo como enigma.
Tomemos, por exemplo, a célebre conversa entre Alice e a Lagarta Azul. A pergunta que guia o diálogo — “Quem é você?” — parece simples. Mas Alice não consegue respondê-la. Ela já mudou de tamanho tantas vezes, passou por situações tão estranhas, que já não sabe mais o que significa “ser” alguém. A Lagarta, por sua vez, rebate cada resposta com nova dúvida. Ela não procura compreender — ela desconstrói. O diálogo se torna uma espiral de perplexidades, até que a pergunta inicial se revele impossível. E, no entanto, essa impossibilidade é precisamente o ponto: Carroll transforma uma cena absurda numa meditação sobre a fluidez do eu.
Na escrita, isso ensina que nem toda pergunta precisa de resposta. Muitas vezes, é mais eficaz deixar a dúvida vibrando no leitor do que fechá-la com uma solução. Isso é particularmente valioso quando lidamos com temas complexos — identidade, memória, moralidade — onde respostas fáceis soam falsas. Carroll nos mostra que a dúvida pode ser um gesto de fidelidade à experiência humana. E que escrever é, às vezes, aceitar não saber.
Essa lição aparece em outro diálogo memorável, com o Gato de Cheshire. Alice pergunta qual caminho deve tomar. O Gato, sorridente, responde: “Depende de onde você quer chegar”. “Eu não sei onde quero chegar”, diz Alice. “Então qualquer caminho serve.” À primeira leitura, parece apenas uma piada circular. Mas nela há uma reflexão silenciosa sobre o sentido. Carroll desmonta a ilusão de que sempre sabemos o que queremos. Ele sugere que a incerteza é um estado legítimo — e talvez até preferível — num mundo onde as metas são frequentemente impostas, não escolhidas. O escritor atento pode usar esse tipo de construção para fazer o leitor pensar sem precisar doutrinar.
Outra instância notável de filosofia disfarçada de humor está no julgamento final, onde a Rainha de Copas exige que a sentença seja proferida antes das provas. Aqui, Carroll satiriza o autoritarismo, a lógica invertida do poder, o vazio cerimonial da justiça. É uma cena cômica, mas também política. Ele não nomeia sistemas, não aponta partidos — apenas mostra, com cristalina ironia, o ridículo das instituições que se pretendem racionais mas operam por capricho. Essa é uma lição crucial: a crítica, quando feita com humor e inteligência, dura mais que qualquer panfleto.
Nesse ponto, Carroll aproxima-se do ceticismo erasmiano. Como Erasmo, ele acredita que a verdade absoluta é uma ilusão — e que toda certeza deve ser examinada com ironia. Mas Carroll vai além: ele encena essa ironia dentro da própria linguagem. Ao criar personagens que falam por paradoxos, que dão respostas que parecem corretas mas que desandam no fim da frase, ele mostra que a linguagem é uma casa frágil. Um castelo de cartas. Uma corda bamba. E, no entanto, é tudo o que temos.
Para o escritor, isso tem implicações práticas. É possível usar o nonsense não como fuga, mas como lente. Criar diálogos onde o absurdo revele a lógica oculta das coisas. Inventar cenas que, embora inverossímeis, revelem verdades íntimas. Achar, no grotesco, o espelho da vida real. Carroll faz isso quando o Chapeleiro tenta explicar por que o tempo parou — e acaba confessando, sem querer, que a pressa é uma invenção. Ou quando a Lebre de Março sugere trocar de lugar na mesa “porque não há espaço” — embora a mesa esteja vazia. O absurdo, nesses casos, é apenas a forma. O conteúdo é real.
E há ainda um último estrato filosófico em Alice que o escritor não deve ignorar: a tensão entre infância e adultismo. O livro inteiro pode ser lido como uma alegoria da transição entre a mente livre da criança e a mente condicionada do adulto. Os personagens que Alice encontra — todos eles adultos em comportamento, linguagem e moral — são caricaturas da racionalidade formal, da vaidade, da burocracia, da autoridade sem sentido. Já Alice, com sua insistência em fazer perguntas, em buscar coerência, em rebelar-se contra o ilógico, representa o último resquício de lucidez. Paradoxalmente, a criança é a única adulta. Essa inversão é uma crítica feroz — e continua atual.
Na prática, isso convida o escritor a repensar seus próprios narradores. Quem fala em sua história? Quem pensa com liberdade e quem apenas repete o que ouviu? Dar voz à ingenuidade ativa — aquela que interroga, desconstrói, não aceita — pode ser um gesto político e poético ao mesmo tempo. Carroll faz isso com maestria ao permitir que Alice conteste, reclame, ria, desafie. Ela não aceita o mundo tal como é apresentado. E isso a torna mais crível do que muitos protagonistas “maduros”.
Um bom exemplo desse uso da filosofia como subtexto está também nos poemas nonsense que pontuam o livro. À primeira vista, são brincadeiras infantis, paródias de canções populares vitorianas. Mas há neles uma revolta silenciosa contra o moralismo educacional da época. Poemas como “Você é velho, Pai William” ou “Ovo de Páscoa” zombam da autoridade, da retórica vazia, da pedagogia reprodutiva. O escritor que desejar esconder camadas críticas sob o manto do lúdico pode estudar esses textos como manuais de subversão.
Carroll, assim, nos dá mais do que cenas excêntricas. Ele nos dá ferramentas para pensar. Para sentir. Para escrever com mais liberdade e profundidade. Seu nonsense é, na verdade, um antídoto contra a anestesia da linguagem automatizada. Ele nos lembra que o real não é aquilo que faz sentido, mas aquilo que nos escapa, que nos inquieta, que nos tira do conforto.
Ao incorporar essa filosofia à sua escrita, o autor contemporâneo pode ir além da trama. Pode criar textos que não apenas contam uma história, mas desmontam certezas. Que fazem rir, sim — mas também pensar. E, como Carroll, pode fazer tudo isso sem perder a leveza. Sem precisar transformar sua obra num tratado. A beleza está em dizer tudo sem afirmar nada. Em mostrar o abismo com elegância. Em fazer da dúvida um gesto literário.
Ao final de Alice, não há resposta. Apenas a lembrança de um sonho. Mas o que é o sonho senão a forma mais sincera de pensamento? Carroll parece nos dizer que a literatura não precisa ensinar, nem provar, nem convencer. Basta que ela perturbe. E, se possível, que perturbe com beleza.
O riso como arma: a crítica social escondida nas entrelinhas de Carroll
Lewis Carroll, ao compor Alice no País das Maravilhas, produziu um dos gestos mais sutis e duradouros de crítica social da literatura moderna. À primeira vista, seu mundo de coelhos apressados, rainhas coléricas e criaturas filosóficas parece alheio à realidade — um devaneio infantil, um capricho de linguagem. Mas basta raspar a superfície do absurdo para encontrar, sob cada diálogo aparentemente ilógico, uma crítica afiada aos pilares de sua época: o autoritarismo, o sistema educacional, o culto às boas maneiras, o burocratismo, o moralismo burguês. Carroll não acusa — ele expõe. E, ao expor pelo riso, fere mais fundo do que qualquer denúncia direta.
É fundamental entender que essa crítica não é panfletária. Carroll não escreve “contra” instituições específicas. Ele não nomeia partidos nem satiriza personagens históricos. O que ele desmonta são os mecanismos: os gestos vazios de poder, os rituais absurdos que sustentam uma ordem social coercitiva, a lógica invertida que legitima a autoridade pelo hábito e não pela razão. Sua sátira é estrutural — por isso sobrevive ao tempo. E é essa estratégia que o escritor de hoje pode aprender a aplicar: menos apontar o dedo e mais virar o espelho.
Tomemos, por exemplo, a célebre Rainha de Copas. Ela é a paródia perfeita do poder desprovido de freio. Grita “Cortem-lhe a cabeça!” a todo instante, sem motivo, sem processo, sem julgamento. Representa a tirania que se basta no grito, a autoridade que dispensa argumento. Mas o que torna a crítica de Carroll tão eficaz é o modo como essa figura não inspira medo, mas riso. A Rainha é ao mesmo tempo terrível e ridícula — e é nessa conjunção que reside o veneno. Ridicularizar o autoritário é mais poderoso do que denunciá-lo. O riso, aqui, é uma arma silenciosa: desarma, desmonta, deslegitima.
Outro alvo visado por Carroll é o sistema judicial. A cena do julgamento do Valete de Copas é uma paródia magistral dos tribunais vitorianos — ou, se quisermos ser mais amplos, da própria ideia de justiça institucionalizada. Juiz, júri e testemunhas se confundem, os procedimentos seguem regras ilógicas, e a sentença é proclamada antes das provas. Alice, incrédula, tenta argumentar com lógica — mas percebe, aos poucos, que a lógica é inútil contra a encenação. A lição é amarga, embora cômica: a autoridade não precisa fazer sentido para se impor, basta repetir seus rituais. Para o escritor contemporâneo, essa cena ensina que o teatro do poder pode ser desmontado por outro teatro — o da literatura.
Carroll também mira no sistema educacional. Em vários momentos do livro, Alice tenta recitar poemas que aprendeu na escola — mas as palavras saem trocadas, os versos se distorcem, a rima se dissolve. É uma crítica clara ao ensino mecânico, à memorização vazia, à pedagogia que sufoca a criatividade infantil. Ao mostrar o colapso desses poemas, Carroll revela o quanto a linguagem escolarizada é frágil quando confrontada com a liberdade do pensamento lúdico. A escrita, aqui, torna-se uma forma de deseducar — no melhor sentido possível. Ela liberta. E o escritor que desejar fazer crítica social sem perder o frescor pode aprender com isso: atacar os sistemas por dentro, subvertendo sua linguagem.
E há, ainda, a crítica ao mundo das convenções sociais. O Chá do Chapeleiro Louco é um desfile de normas sociais levadas ao paroxismo: mudar de lugar a cada fala, servir chá sem sentido, punir quem muda o assunto. É uma cena cômica, mas também claustrofóbica. O que está em jogo ali é a reprodução automática dos gestos sociais, mesmo quando já perderam o sentido. Carroll denuncia, assim, a etiqueta como forma de prisão. A boa educação — tão valorizada na Inglaterra vitoriana — aparece como uma coreografia sem alma. E é justamente quando Alice começa a se rebelar contra essas regras que se torna mais interessante enquanto personagem.
O que torna todas essas críticas tão eficazes é a sua sutileza. Carroll nunca levanta bandeiras. Nunca discursa. Ele encena. Mostra o absurdo e se retira. Deixa que o leitor tire suas conclusões — ou que apenas ria, sem perceber que está rindo de si mesmo. Essa é uma lição poderosa para qualquer autor que deseje escrever sobre temas sensíveis. A crítica embutida no riso entra mais fácil. E permanece mais tempo.
Essa estratégia pode ser aplicada em qualquer gênero. Mesmo num romance contemporâneo realista, é possível usar o grotesco com inteligência. Criar personagens que falam como burocratas mesmo em situações íntimas. Fazer cenas onde o ritual supera o conteúdo — como uma reunião de condomínio onde ninguém diz o que pensa, mas todos seguem o protocolo. Ou uma escola onde o conteúdo é tão decorado que os alunos repetem poesia sem saber o que estão dizendo. O importante é construir o absurdo como reflexo de uma lógica social — não como um capricho estético.
O humor, aqui, funciona como um estetoscópio: ele ausculta os desvios, os automatismos, os ruídos do mundo. Carroll nos mostra que rir do poder é desarmá-lo. E que o nonsense, longe de ser alienante, pode ser uma forma refinada de engajamento. Quando Alice responde ao Rei que ele não pode ter sentido mais do que um por vez, ou quando corrige a Rainha em plena audiência, ela encarna o gesto libertador de quem não aceita o jogo. Mesmo sem armas, mesmo encolhida, mesmo confusa — ela resiste. E isso faz dela uma das personagens mais subversivas da literatura.
Outro aspecto interessante é a crítica à linguagem oficial. Carroll repete estruturas pomposas, exagera na retórica jurídica e na autoridade sintática das figuras de poder. Mas coloca essas palavras vazias na boca de personagens grotescos. Isso ensina ao escritor que criticar a linguagem é criticar o sistema que a produz. Ao zombar da forma, Carroll revela o conteúdo. Um juiz que fala como um panfleto, um rei que repete fórmulas, uma rainha que grita slogans — tudo isso ainda soa assustadoramente atual.
Não é à toa que Alice continua sendo lida como um texto político, mesmo quando não quer sê-lo. É a força da estrutura simbólica que Carroll criou. Ele nos lembra que, para ferir o mundo, não é preciso gritar. Basta rir com precisão. E que, na literatura, rir pode ser um gesto de rebelião.
Assim, o escritor contemporâneo encontra em Alice não só um manual de imaginação, mas também um compêndio de crítica social elegante. Um modo de dizer “isso não faz sentido” sem precisar dizer “isso está errado”. Um modo de mostrar a estupidez do mundo sem se tornar moralista. Porque a moral, no fundo, é só mais um tipo de nonsense. E o que Carroll faz, com sua mestria de matemático e poeta, é devolver o nonsense ao seu lugar legítimo — não como inimigo da razão, mas como seu espelho mais fiel.
O cenário como personagem: o mundo exterior como espelho interior
Em Alice no País das Maravilhas, o cenário não é apenas pano de fundo. Não é um palco sobre o qual os personagens transitam e a trama se desenrola. É, antes, um agente narrativo com vida própria — mutável, simbólico, emocionalmente responsivo. Cada ambiente por onde Alice passa carrega em si uma atmosfera, uma lógica e uma presença tão marcantes que quase rivalizam com os personagens em força dramática. Lewis Carroll não descreve cenários para situar o leitor; ele os molda para dobrar a experiência sensível da protagonista. O espaço, em Alice, pensa, reage, distorce-se. Ele espelha.
Essa é uma das lições mais poderosas que o livro oferece a quem escreve: o ambiente pode — e talvez deva — ser mais do que geografia. Pode ser personagem. Pode ser tensão. Pode ser comentário indireto sobre o estado interior da heroína, sobre o absurdo da situação ou sobre o desconcerto do mundo. E para isso não é necessário ser realista, muito menos expositivo. Basta entender que o espaço, quando bem trabalhado, fala. E Carroll é um dos mestres nesse idioma.
A descida inicial de Alice pela toca do coelho já dá a medida do que está por vir. Em vez de um buraco escuro e breve, ela entra num túnel que parece não ter fim, que se alonga verticalmente como uma fábula em queda. Durante a descida, Carroll descreve prateleiras, mapas, relógios, potes de geleia — objetos que não fazem sentido no subterrâneo, mas que reforçam o caráter doméstico e, ao mesmo tempo, insólito da jornada. O mundo real começa a se dissolver. E o espaço começa a responder à lógica onírica da imaginação.
Logo depois, temos o salão com muitas portas — um lugar que parece saído de um pesadelo labiríntico, mas que Carroll descreve com a precisão de um matemático. É um espaço de espera, de frustração, de proporções inconstantes. Alice precisa adaptar seu tamanho para acessar as portas, e essa adaptação é um reflexo direto de sua crise de identidade. Crescer e encolher tornam-se gestos dramáticos, e o cenário os exige. O espaço não apenas acolhe a metamorfose — ele a impõe.
É interessante notar que a ambientação nunca é neutra. Cada novo lugar apresenta uma lógica própria, como se cada território tivesse seu idioma, suas leis físicas, seus hábitos sociais. O bosque onde Alice esquece seu nome é um exemplo disso: um espaço de esquecimento, onde a linguagem e a memória vacilam. A floresta do esquecimento é, na verdade, o próprio sentimento da perda de identidade convertido em espaço narrativo. Carroll não explica esse fenômeno. Ele o apresenta. E é nesse gesto de não racionalizar o ambiente que reside sua força poética.
Para o escritor contemporâneo, essa técnica é extremamente aplicável. Transformar o espaço em espelho da personagem é um recurso que pode ser usado em qualquer gênero — do realismo ao fantástico. Uma sala apertada pode refletir a culpa de um personagem. Uma cidade barulhenta pode reforçar sua ansiedade. Um lugar que se repete com pequenas variações pode sugerir a repetição sem sentido da vida cotidiana. O importante não é descrever o cenário com minúcia, mas infundi-lo com subjetividade.
Carroll faz isso sem parecer abstrato. Veja a cena do jardim da Rainha de Copas, onde os soldados-paus pintam as rosas brancas de vermelho para não serem executados. O jardim, que deveria ser um lugar de beleza e serenidade, torna-se um espaço de tensão absurda, onde a estética é uma questão de sobrevivência. É uma alegoria sutil do autoritarismo que controla até o gosto, que impõe padrões e exige que a realidade se curve ao capricho. Mais uma vez, o cenário carrega subtexto. E ao reagir às ações das personagens, assume papel ativo.
Outro exemplo é o salão do chá, que, embora estático, transmuta-se pela repetição ritualística dos gestos: sempre chá, sempre mudança de lugar, sempre um tempo que não anda. O espaço é imóvel, mas o que o torna opressivo é o que não acontece dentro dele. Carroll trabalha com a ausência: não há progresso, não há mudança, não há sentido. O espaço torna-se uma armadilha temporal. O autor, aqui, nos mostra que mesmo a estagnação pode ser um tipo de narrativa.
Essa abordagem também permite que o escritor brinque com escalas e proporções. Em Alice, o tamanho das coisas nunca é fixo — e o mundo responde ao tamanho da protagonista. Isso gera uma experiência narrativa altamente simbólica: Alice não se sente grande ou pequena apenas fisicamente, mas emocionalmente. Quando ela cresce demais e enche o salão com seu corpo, não é apenas uma mudança de estatura — é uma metáfora da inadequação, do excesso, da criança que já não cabe mais no mundo infantil. Escrever com essa sensibilidade espacial é escrever com o corpo do personagem, não apenas com seus pensamentos.
Além disso, Carroll nos lembra de algo essencial: o espaço pode ser cômico. Em Alice, o mundo é, muitas vezes, engraçado porque é desmedido, deslocado, ilógico. Os moinhos mentais que fazemos ao tentar entender por que uma porta leva a um corredor que encolhe, ou por que uma casa comporta um bebê que vira porco, não produzem apenas confusão — produzem humor. O humor do cenário, quando bem dosado, pode ser mais potente do que qualquer piada verbal. Ele cria tensão, ironia, deslocamento. E prepara o leitor para o imprevisível.
Para aplicar isso à própria escrita, o autor pode começar por um exercício simples: reescrever uma cena comum — um jantar, uma reunião, uma caminhada — mas deslocando as propriedades do espaço. E se a mesa for mais comprida do que a sala? E se a porta mudar de lugar a cada vez que a personagem olhar? E se o céu mudar de cor conforme o humor do protagonista? O nonsense espacial não precisa ser mágico — basta ser simbólico. E, como Carroll mostra, o simbolismo mais eficaz é o que se disfarça de absurdo.
Por fim, há a cena do tribunal — uma espécie de condensação de todos os espaços anteriores. Um lugar que deveria representar a ordem, mas que funciona segundo as leis do caos. O tribunal é o teatro do mundo invertido. É onde as personagens se reúnem, onde a lógica tenta reinar, mas acaba sendo devorada pelo nonsense. E é, também, onde Alice cresce — literalmente — até não caber mais ali. O espaço, nesse ponto, não aguenta mais contê-la. Ele colapsa. E esse colapso coincide com o fim do sonho.
Carroll, ao fazer do cenário um personagem, nos ensina que o espaço pode ser aliado na construção da subjetividade. Não é apenas onde a história acontece. É como ela acontece. Um espaço narrado com inteligência dobra o tempo, tensiona o personagem, revela subtextos e, sobretudo, deixa rastros no leitor. Porque, como nos sonhos, não é só o que se vê que importa — é onde se esteve. E Alice é, no fundo, a história de uma menina que passou por lugares onde a lógica vacila, onde o corpo muda, onde a palavra se estilhaça. E que, ao acordar, ainda sente o chão desses lugares sob os pés.
O estilo como argumento: quando a linguagem pensa por si mesma
No universo de Alice no País das Maravilhas, tudo parece à beira do colapso: o tempo hesita, a lógica tropeça, os personagens contradizem a si mesmos. Mas há um eixo oculto que sustenta essa máquina barulhenta de contrassensos: o estilo. Lewis Carroll, ainda que escreva sobre o caos, escreve com extrema precisão. A linguagem em Alice é construída com tamanho rigor que sustenta o desvario. Paradoxalmente, quanto mais a realidade desanda, mais a linguagem se afina. Essa tensão é, talvez, a principal lição técnica do livro: estilo não é ornamento — é estrutura de pensamento.
A primeira coisa que chama a atenção em Alice é a fluidez com que o tom se alterna. Carroll desliza entre o cômico e o inquietante, entre a lógica implacável e o absurdo mais pueril, entre a doçura lírica e a sátira corrosiva — e tudo isso sem rupturas abruptas. O segredo está na prosódia: as frases de Carroll têm ritmo. Elas respiram. Seus diálogos têm pausas, hesitações, repetições, interjeições — elementos que parecem despretensiosos, mas são construídos com o ouvido de quem compõe uma partitura. O nonsense, nesse sentido, é milimetricamente orquestrado.
Tomemos um exemplo simples, mas emblemático. Quando o Gato de Cheshire começa a desaparecer, sua cauda é a última parte a sumir. Alice comenta: “Já vi um gato sem sorriso, mas um sorriso sem gato é a coisa mais curiosa que já vi na vida!” A frase tem o tom de uma observação leve, quase infantil. Mas repare no desenho da frase: a inversão final (“um sorriso sem gato”) faz o leitor tropeçar por um segundo — o suficiente para que ele sinta, mesmo que inconscientemente, que a lógica da realidade foi invertida. É o estilo — essa forma precisa de ordenar palavras — que carrega o efeito.
A ironia também é elemento constante. Mas não é uma ironia escancarada. É uma ironia estrutural, que perpassa o modo como o narrador organiza a informação. Ele descreve cenas sem reagir emocionalmente, mesmo quando elas são bizarras ou ameaçadoras. Essa neutralidade fingida cria um efeito de distanciamento cômico: o leitor percebe o absurdo antes do narrador. E esse descompasso é uma forma de convite à inteligência. Carroll não subestima seu leitor — ele o provoca.
O estilo, nesse contexto, é também uma forma de autoridade. O que sustenta a confiança do leitor numa história onde tudo é ilógico? A linguagem. A prosa de Carroll é tão clara, tão musical, tão segura de si, que acabamos aceitando o absurdo como parte de um mundo coerente. Essa é uma das maiores proezas do livro: a clareza com que expõe o ilógico. Escrever bem, aqui, não é apenas escrever bonito. É escrever com precisão sobre o impreciso. É nomear o inominável.
Esse domínio técnico se revela ainda mais no uso da polifonia. Em Alice, a multiplicidade de vozes não se dá apenas pelo elenco de personagens excêntricos — mas pelas formas diversas de linguagem que eles encarnam. A Rainha de Copas fala com imperativos curtos, sempre ameaçadores. O Chapeleiro, por outro lado, fala por meio de charadas, repetições, frases truncadas. A Lagarta é quase lacaniana em sua sintaxe: devolve perguntas como espelhos distorcidos. Já a Tartaruga Falsa mistura sentimentalismo e solenidade, como um velho professor de retórica. Cada personagem carrega um registro próprio — e isso se traduz diretamente na textura da escrita.
Essa heterofonia — para usar um termo de Bakhtin — permite que o texto simule debates internos, tensões ideológicas, choques culturais. O mundo de Alice é um mundo em fricção permanente — e essa fricção se faz na linguagem. O escritor que deseja explorar complexidade emocional pode aprender muito com esse jogo de vozes. Não é preciso explicar o conflito — basta pôr duas linguagens em colisão. Um personagem que fala em provérbios pode ser confrontado com outro que usa gírias. Um narrador formal pode descrever uma cena grotesca. A dissonância faz a música.
Outro traço marcante do estilo de Carroll é a inclusão de poemas, canções e paródias — dispositivos que poderiam parecer marginais, mas que funcionam como contrapontos formais e temáticos. Esses trechos operam como microcosmos de estilo. Pegue, por exemplo, o poema “Você é velho, pai William”, uma paródia de um texto moralizante bastante conhecido no período vitoriano. Carroll reescreve os versos, preservando a estrutura, mas subvertendo o conteúdo. Em vez de um pai sábio, temos um velho excêntrico, desafiando as expectativas de seu interlocutor. O resultado é um poema cômico, mas também uma crítica ao moralismo rígido. E tudo isso se faz pelo ritmo, pelo tom, pela escolha vocabular. O estilo é a crítica.
O escritor pode, com isso, extrair uma técnica valiosa: a de desarticular o conhecido por dentro. Usar a forma esperada para dizer o inesperado. Escrever um diálogo de entrevista que começa sério e termina em absurdo. Compor uma carta de amor onde as palavras escorregam em duplo sentido. Parodiar documentos oficiais, regras de etiqueta, manuais de conduta. O estilo, quando manipulado com consciência, torna-se uma forma de sabotagem sutil.
Carroll também usa a ambiguidade como ferramenta estética. Muitas frases podem ser lidas de mais de uma forma — e essa abertura semântica não é falha, mas recurso. Quando Alice diz “Eu sabia quem eu era esta manhã, mas acho que já mudei algumas vezes desde então”, a frase pode ser interpretada como piada, como lamento, como diagnóstico existencial. O estilo deixa em suspenso. E é nessa suspensão que o leitor entra, completa, projeta.
Escrever com esse grau de abertura exige domínio da sintaxe e sensibilidade para o ritmo. O escritor precisa saber onde deixar a frase respirar. Onde cortar. Onde repetir. Onde insinuar. Carroll, como matemático, entendia de estruturas. Como poeta, entendia de ressonância. E sua prosa se equilibra entre essas duas competências: ordem e vibração.
Por fim, o estilo de Carroll é generoso com o leitor. Mesmo nas passagens mais complexas, ele jamais se torna hermético. Ele não escreve para ser decifrado — escreve para ser sentido. Cada frase oferece algo: uma imagem, uma música, um enigma. E é isso que o torna tão imitável e, ao mesmo tempo, tão único. Muitos tentaram replicar Alice, mas poucos conseguiram captar essa alquimia entre simplicidade e profundidade.
O escritor que deseja criar um estilo igualmente marcante deve, antes de tudo, abandonar a ideia de que estilo é adorno. Estilo é argumento. É a forma como o texto pensa. É a ética da linguagem. É o modo como o autor se relaciona com o mundo, com seus personagens, com seu leitor. Um texto escrito com consciência estilística não precisa justificar-se — ele convence pelo próprio gesto.
Carroll convence. Mesmo quando tudo desanda, sua escrita sustenta. Mesmo quando o enredo ziguezagueia, sua linguagem ancora. Mesmo quando a realidade vacila, a frase permanece firme. E é por isso que Alice nos acompanha há mais de 150 anos — não porque nos explica o mundo, mas porque nos dá uma linguagem para habitá-lo.
A construção da frase: quando cada linha é uma miniatura dramática
Entre as muitas virtudes técnicas de Alice no País das Maravilhas, talvez uma das menos comentadas — e ainda assim das mais preciosas para o escritor — seja a construção da frase. Carroll sabia que cada frase é, em si, uma unidade dramática: ela carrega ritmo, intenção, imagem, tensão e, muitas vezes, subtexto. Uma frase, quando bem construída, não é apenas um veículo de informação — é uma cena condensada. Em Alice, muitas dessas frases sobrevivem fora de contexto, o que já diz algo sobre sua densidade estilística. São fragmentos com vida própria. Aforismos disfarçados. Ganchos narrativos escondidos em observações banais.
O ponto de partida para entender a força dessas frases está no modo como Carroll organiza seus períodos. Ele alterna, com precisão musical, frases longas — compostas, hipnóticas, que reproduzem o fluxo de pensamento de Alice — com frases curtas, secas, muitas vezes abruptas, que marcam viradas, reações ou interrupções do absurdo. Essa oscilação cria uma tensão rítmica: o leitor ora desliza, ora tropeça. E esses tropeços são intencionais — como no humor físico, onde a queda provoca o riso. Carroll faz da quebra de ritmo um recurso dramático.
Um exemplo disso aparece logo no início, quando Alice cai na toca do coelho. O narrador descreve o que ela vê na descida — relógios, estantes, potes — com frases longas, quase meditativas. De repente, Alice diz: “Tomara que eu não caia direto pelo centro da Terra!” Essa frase não apenas quebra o ritmo anterior, como insere comicidade, tensão e ingenuidade infantil em um único sopro. Carroll entende que a frase curta, quando bem posicionada, não é sinal de preguiça — é pontuação emocional.
Também é notável a forma como ele usa as orações subordinadas. Em vez de isolar pensamentos, ele os empilha. As frases encadeadas sugerem confusão, simultaneidade, hesitação — estados mentais recorrentes em Alice. Ao escrever algo como “Ela estava começando a pensar que, por mais que tentasse, jamais conseguiria lembrar se estava indo para cima ou para baixo, o que, convenhamos, não era uma coisa fácil de saber quando se está caindo tão devagar e por tanto tempo”, Carroll cria um efeito de espiral mental. O leitor é arrastado para dentro da lógica da personagem — uma lógica imperfeita, em construção, mas coerente em seu próprio universo.
Essa técnica é valiosa para escritores que desejam representar fluxo de consciência, dúvida ou raciocínio errático. Em vez de dizer que o personagem está confuso, o autor pode simplesmente permitir que sua frase se embaralhe — desde que mantenha elegância e legibilidade. A forma vira conteúdo.
Há ainda outro recurso recorrente: a interrupção. Carroll muitas vezes quebra a frase com travessões, parênteses, mudanças abruptas de foco. Essas quebras reproduzem o modo como a mente infantil salta de ideia em ideia. Mas também funcionam como marca estilística: o texto se recusa à linearidade. Ele se abre ao imprevisível. Um exemplo clássico é a cena do julgamento, onde Alice interrompe a Rainha, o Rei, o Gato, o tempo inteiro — e o narrador parece acompanhar essa desordem com frases que pulam de sujeito para sujeito, sem perder a compostura.
Essa construção caótica controlada é difícil de executar, mas extremamente eficaz. Ela permite que a frase ganhe dinamismo, mesmo quando trata de algo estático. Um personagem pode estar sentado, mas sua fala pode correr, tropeçar, se corrigir, hesitar. Carroll mostra que o drama não está no que acontece — está em como se fala o que acontece.
Também vale mencionar o uso de provérbios, frases-feitas e máximas invertidas. Carroll adora brincar com expressões familiares. Em vez de dizer “o tempo voa”, por exemplo, ele coloca o Chapeleiro dizendo que o Tempo é uma pessoa que se magoa com facilidade. Esse tipo de subversão frasal tem dois efeitos: primeiro, provoca um estranhamento humorístico; segundo, convida o leitor a olhar para a linguagem com olhos novos. O escritor pode aprender, aqui, a minar os clichês de dentro — reescrevendo-os com leveza, como quem quebra um vidro para mostrar que ele era mais frágil do que parecia.
Frases como “Quem se importa com um livro sem figuras nem diálogos?” ou “Já ouvi falar de gatos sem sorriso, mas um sorriso sem gato?” tornaram-se ícones justamente por sua forma. São frases que operam como enigmas. Elas apresentam o inesperado como se fosse trivial. E essa trivialização do absurdo é o que as torna inesquecíveis. O escritor que quiser produzir frases memoráveis deve, portanto, preocupar-se não apenas com o conteúdo, mas com a forma como ele se entrega: o ritmo, a pausa, a surpresa.
Outro aspecto importante é o encerramento dos parágrafos. Carroll frequentemente termina seus parágrafos com uma imagem forte ou com uma frase de efeito — o que cria sensação de conclusão mesmo quando a narrativa continua. Essa técnica é útil para estruturar capítulos, para construir pausas naturais, para pontuar momentos-chave. É como se cada parágrafo fosse um pequeno palco com sua própria cortina. O escritor pode, assim, pensar em cada parágrafo como uma vinheta — com início, meio e fecho imagético.
Há ainda o uso cuidadoso da repetição. Carroll repete palavras, construções, estruturas — mas sempre com variações. Isso cria um efeito de encantamento. A repetição não entedia — hipnotiza. Frases como “curioser and curioser!” (mais e mais curioso!), com sua estrutura incorreta, tornam-se slogans emocionais. Elas capturam o estado de espírito da personagem com exatidão fonética. É uma forma de musicalizar o pensamento. Para o escritor contemporâneo, essa técnica é valiosa sobretudo em narrativas mais poéticas ou introspectivas. Repetir uma palavra não é um erro — é uma escolha, desde que feita com intenção.
Em suma, a construção frasal em Alice revela o que há de mais sofisticado na técnica de Carroll: ele escreve como quem compõe. Cada frase é pensada como unidade autônoma, mas também como parte de um sistema mais amplo de ressonância. O nonsense, aqui, não é espontâneo — é profundamente arquitetado. E é isso que dá ao texto sua longevidade. O leitor não se lembra apenas da história. Ele se lembra de como as frases soavam. De como entravam no ouvido. De como balançavam por dentro da mente.
Para o escritor que deseja alcançar esse nível de precisão, o caminho é a escuta. Ouvir sua própria escrita. Ler em voz alta. Sentir o ritmo. Cortar o excesso. Alongar o necessário. Permitir que cada frase tenha intenção, respiro, cadência. E, sobretudo, aceitar que uma boa frase não serve apenas à informação — serve à emoção, ao mistério, à memória.
Lewis Carroll entendeu isso melhor do que ninguém. E por isso suas frases continuam circulando, como se tivessem vida própria. Porque têm.
Aplicações práticas: como escrever como quem sonha acordado
Chegado a este ponto do percurso por Alice no País das Maravilhas, o leitor-escritor já terá compreendido que não se trata apenas de um livro excêntrico, mas de um tratado narrativo velado. Carroll não escreveu um manual de escrita — escreveu uma obra em que o próprio ato de contar se torna tema, linguagem, arquitetura. Resta agora uma pergunta inevitável: como transportar esses recursos para o próprio texto? Como escrever histórias que, como Alice, escapem à previsibilidade sem perder coesão, que experimentem sem parecer caóticas, que se permitam brincar com a lógica e, ao mesmo tempo, produzir sentido?
A resposta começa com uma disposição íntima: abrir mão do controle total. O autor que pretende aplicar as lições de Carroll precisa aprender a ouvir o texto, a seguir suas pistas internas, a permitir que o absurdo tenha espaço. Isso não significa improvisar sem critério, mas sim aceitar que nem toda narrativa precisa ser didática. Às vezes, uma boa história é aquela que deixa o leitor confuso, perturbado, encantado — e ainda assim estranhamente satisfeito.
Uma das estratégias mais fecundas é começar por uma imagem ilógica, e partir dela como se fosse absolutamente normal. Foi o que Carroll fez com o coelho de colete e relógio. No seu texto, você pode começar com um personagem que encontra uma escada para cima no meio da rua, ou uma carta escrita por um peixe, ou um quarto onde tudo que se diz se torna visível no ar. O truque não está em justificar a estranheza — está em aceitá-la como premissa. A lógica virá depois, construída a partir da emoção da personagem e não das regras do mundo.
Uma técnica útil, nesse sentido, é perguntar-se: “como essa situação absurda transforma o modo de pensar do protagonista?”. Em vez de usar o surreal como espetáculo visual, use-o como tensão psicológica. Faça com que cada elemento estranho revele uma dúvida, uma memória, uma inquietação. Em Alice, os encontros com figuras nonsense são sempre confrontos filosóficos: o Chapeleiro, a Lagarta, o Gato de Cheshire — todos fazem Alice pensar sobre si mesma. Faça o mesmo com seus personagens. Que tipo de criatura, de lugar ou de lógica poderia colocá-los em confronto com algo que nunca ousaram pensar?
Outro recurso potente é a variação de ritmo e tom. Carroll alterna cenas vertiginosas com pausas meditativas, diálogo ágil com reflexão absurda. O autor contemporâneo pode experimentar essa alternância para evitar o esgotamento do leitor. Uma cena de caos pode ser seguida por um momento íntimo e estranho — como um personagem tentando lembrar como era o cheiro da casa da avó. Isso não precisa “fazer sentido”. Precisa desfazer o tédio.
Ao estruturar o texto, vale explorar a espiral narrativa que analisamos anteriormente. Escreva sem necessidade de chegar a um clímax. Construa episódios que se conectem por emoção, por imagem, por sensação — e não necessariamente por causa e consequência. Permita que as cenas se somem como memórias de um sonho: não para produzir uma história lógica, mas para criar um efeito de travessia. Que o leitor, ao fim, sinta que passou por algo, mesmo que não saiba explicar o quê.
Carroll também nos ensina a usar os personagens secundários como provocadores. Eles não estão ali para servir ao protagonista — estão ali para confundi-lo, contradizê-lo, obrigá-lo a pensar. Experimente criar figuras que dizem coisas aparentemente sem sentido, mas que guardam sabedorias tortas. Um cego que diz “há cores que só se veem no escuro”; uma criança que insiste em dormir para voltar ao tempo em que ainda não era nascida. Esses diálogos não precisam levar a conclusões — precisam provocar deslocamento. O nonsense, aqui, funciona como espelho deformante: mostra o real por meio do impossível.
Na construção do estilo, as lições são igualmente práticas. Use a linguagem como personagem: explore frases que tropeçam, que hesitam, que se corrigem. Misture registros — coloquial com poético, técnico com sentimental. Escreva trechos onde o som das palavras carrega mais emoção do que o sentido. E, sobretudo, trabalhe com a pontuação como instrumento de ritmo. Um ponto final seco pode dizer mais que um parágrafo inteiro. Um travessão pode abrir janelas de dúvida. Uma repetição pode ser o eco de uma memória que ainda dói.
Carroll também oferece um caminho para quem deseja criticar sem doutrinar. Se você quer escrever sobre a rigidez do sistema educacional, crie uma escola onde os professores ensinam apenas palavras inventadas, e os alunos tiram nota por silêncio. Se quer criticar o culto à produtividade, crie um personagem que trabalha sem saber para quem, ou por quê, e que recebe, ao fim do mês, um recibo dizendo: “você foi eficiente na ausência”. O nonsense é uma lente de aumento: torna visível o absurdo do que consideramos normal. E o leitor, ao rir, percebe que algo do que vive se parece com aquilo.
Além disso, Carroll nos dá uma lição profunda sobre o uso da dúvida. Ao invés de afirmar verdades, ele cria perguntas sem resposta. Para o escritor, isso é libertador. Em vez de resolver a história, por que não deixá-la em aberto? Em vez de fechar um arco, por que não interrompê-lo no momento mais estranho? Isso não frustra o leitor — estimula. Desde que a jornada tenha sido rica em imagens, em vozes, em sensações. A literatura que permanece não é a que responde — é a que ecoa.
Uma forma prática de aplicar isso é revisar seu texto e eliminar conclusões desnecessárias. Em vez de dizer “ele entendeu que amava Maria”, termine com “ele olhou para a xícara de café esquecida e pensou: Maria não voltava desde setembro”. É a imagem que carrega o sentido. E se ela for ambígua, tanto melhor.
Por fim, lembre-se do humor. Carroll nos lembra que rir é uma forma de inteligência narrativa. Mesmo em textos densos, é possível incluir o riso como alívio, como contraponto, como fissura na parede do real. Um personagem que se atrapalha com seus próprios pensamentos, uma fala que escapa do registro esperado, uma situação que se resolve pelo detalhe mais ridículo — tudo isso torna o texto mais vivo, mais humano, mais capaz de surpreender.
Escrever como quem sonha não é escrever sem método. É, ao contrário, escrever com um método que respeita o devaneio. Alice é o resultado de um autor que soube dar forma ao delírio, corpo à dúvida, voz ao absurdo. Aplicar suas técnicas não é imitá-lo — é assumir o risco que ele assumiu: o risco de criar sem amarras, mas com precisão.
Você não precisa escrever sobre coelhos falantes. Basta criar um mundo onde o leitor, por algumas páginas, duvide da lógica que o governa. E ao fechar o livro, talvez, deseje voltar.
Alice como mapa para a escrita do inusitado
Ao final de Alice no País das Maravilhas, Alice desperta. Não há epifania, nem prêmio, nem moral edificante. O que resta é a lembrança de um sonho intenso, desajustado e, ainda assim, irresistivelmente coeso à sua própria maneira. A narrativa se dissolve sem se explicar. E, no entanto, o leitor sai transformado. Esse é o gesto definitivo de Lewis Carroll: produzir uma obra que não se compromete com a lógica tradicional e, justamente por isso, inaugura um novo tipo de sentido — um sentido que não está na conclusão, mas no percurso, não na resposta, mas na experiência. Para quem escreve, essa é uma das lições mais ousadas e duradouras da literatura moderna.
Escrever à maneira de Alice não é copiar seu estilo, seus personagens ou sua linguagem. É adotar seu espírito. É aceitar que a literatura não precisa seguir sempre o caminho mais seguro. Que o delírio pode ser método. Que o nonsense pode ser espelho. Que o sonho, se escrito com precisão, pode dizer mais sobre a realidade do que qualquer descrição fiel. Carroll criou um texto que resiste à decodificação, mas não à leitura. Ele nos pede menos compreensão e mais disponibilidade.
Ao longo destas nove partes, vimos como cada aspecto técnico de Alice esconde uma provocação profunda ao fazer literário: a premissa absurda que desafia o realismo excessivo; a estrutura espiral que questiona a narrativa linear; a filosofia embutida nas entrelinhas do humor; a crítica social diluída em cenas cômicas; a ambientação que pensa junto com os personagens; o estilo como veículo de pensamento; a frase como célula dramática; e, finalmente, a aplicação prática dessas estratégias num texto contemporâneo.
Todas essas lições convergem para um ponto central: Carroll criou um universo em que cada elemento — do vocabulário ao cenário, da pontuação à estrutura — colabora para criar uma experiência de estranhamento lúcido. E é isso que a boa literatura faz: perturba o leitor sem empurrá-lo para fora, cria desconforto sem rejeição, propõe uma nova sensibilidade sem sermão. Em Alice, tudo vacila — menos o prazer da leitura.
Há, nesse sentido, uma espécie de paradoxo final: embora Alice caia por um buraco e percorra um mundo de incertezas, o que o leitor experimenta é justamente o oposto da queda — é elevação. Há algo emancipador em ver o absurdo tratado com dignidade, em ver a dúvida representada com graça, em ver uma protagonista que não vence nem perde — apenas resiste, interroga, observa. Alice não é heroína no sentido clássico. Ela não derrota o mal. Ela não salva ninguém. Ela não aprende uma lição transformadora. Mas ela é — talvez por isso mesmo — uma das figuras mais livres da literatura ocidental.
Ao utilizar o nonsense como estratégia estética, Carroll tocou em algo profundamente moderno: a consciência de que o mundo já não pode ser plenamente explicado, que a linguagem é um jogo que nem sempre obedece às regras, que o sujeito é múltiplo, móvel, contraditório. É essa consciência — embutida num livro de fantasia para crianças — que torna Alice tão revolucionária. E tão útil a quem escreve hoje.
Em um tempo em que o mercado editorial muitas vezes exige clareza, linearidade, mensagens diretas e personagens “inspiradores”, retornar a Alice é um ato de resistência estética. É lembrar que a escrita pode ser torta, que o pensamento pode se arrastar, que a beleza pode estar na hesitação. É lembrar que há espaço, na literatura, para o estranhamento — desde que ele seja verdadeiro. Desde que a dúvida seja bem escrita.
O escritor que quer deixar um rastro mais profundo precisa arriscar. Precisa confiar que o leitor inteligente não exige ser conduzido pela mão — basta que se lhe mostre um mundo coerente em seus próprios termos. Carroll oferece esse mundo. Um país onde os coelhos olham o relógio, as lagartas fumam cachimbos, os sorrisos flutuam sozinhos — e onde tudo isso parece, de algum modo, inevitável. O leitor aceita o inaceitável porque Carroll escreve com convicção. E convicção não se finge. Ela nasce de um autor que conhece seu material até as entranhas.
Talvez seja essa, no fim das contas, a lição definitiva que Alice no País das Maravilhas oferece a quem escreve: confie no estranho. Não como excentricidade, mas como via de revelação. Crie cenas que não explicam, mas sugerem. Escreva diálogos que desafiam o hábito. Componha mundos que obrigam o leitor a reaprender a ler. Permita que a sua escrita assuma riscos — desde que o texto esteja vivo em cada palavra. E lembre-se: o nonsense só funciona porque, no fundo, ele faz sentido. Um outro tipo de sentido. Um sentido que não se resume, mas que permanece.
Carroll não quis ensinar nada — mas ensinou tudo. Não nos deu respostas — mas nos mostrou como fazer perguntas melhores. E talvez seja isso o que mais precisamos agora: não mais manuais de como escrever um best-seller, mas livros que nos ajudem a escrever com mais coragem, mais delírio, mais escuta, mais mundo.
Então, da próxima vez que alguém perguntar o que Alice tem de tão especial, você poderá responder, sem ironia: tudo. E ainda mais o que não cabe em palavras.
A ousadia de abandonar o senso comum