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Conexão entre polarização, fake news e a influência das emoções

Em tempos de polarização política, fake news e crenças inflexíveis, o sistema de justiça americano enfrenta o desafio de garantir que os julgamentos permaneçam justos e imparciais. Nos EUA, o processo de voir dire — a fase de seleção de jurados onde advogados e juízes questionam potenciais jurados sobre suas opiniões e vieses — ganhou novo significado na era das divisões políticas e das redes sociais. O que deveria ser um mecanismo para garantir a neutralidade nos julgamentos se tornou, muitas vezes, uma estratégia para selecionar jurados mais favoráveis a uma das partes. Em um ambiente onde as pessoas têm opiniões firmes e raramente mudam de ideia, qualquer inclinação de um jurado pode ser decisiva entre condenação e absolvição.

No Brasil, deixa-me já dizer, o cenário é bem diferente (na minha opinião, melhor). O sistema de seleção de jurados para crimes graves não inclui uma etapa equivalente ao voir dire. Os jurados são sorteados de uma lista e entram na sala sem que suas crenças sejam analisadas. Em muitos aspectos, isso é visto como uma prática mais democrática, pois impede que os advogados manipulem o perfil do júri. Porém, a ausência desse processo também impede que vieses relevantes sejam identificados, o que pode ser prejudicial tanto para a acusação quanto para a defesa.

Essa situação me convida à reflexão sobre o uso de histórias e de construções emotivas no campo do direito. Nos tribunais americanos, o trabalho de persuasão começa antes mesmo do julgamento, na seleção dos jurados. Os advogados buscam criar condições favoráveis para que o caso que irão expor seja mais bem compreendido e aceite. Por exemplo, em um caso de defesa criminal, a equipe pode procurar jurados que compartilhem certas experiências de vida com o réu, como um histórico de privação econômica, pois isso aumenta as chances de uma decisão mais empática. No Brasil, onde essa escolha não existe, o trabalho de persuasão precisa se concentrar no julgamento em si. A habilidade de apresentar os fatos de forma impactante é crucial, e advogados frequentemente fazem isso ao detalhar a trajetória de vida do acusado ou ao ilustrar as consequências reais para uma vítima.

Estamos em um mundo saturado de informações, onde dados e fatos estão a um clique de distância, mas paradoxalmente as pessoas acreditam mais em construções emotivas do que em provas concretas. As fake news se aproveitam dessa preferência pela confirmação emocional, o que ajuda a explicar por que tantas pessoas se deixam levar por conteúdos falsos. A combinação de simplificações exageradas e o viés de confirmação é poderosa; discursos fáceis e apelos emocionais intensos são mais facilmente aceitos, mesmo sem base em fatos. Por exemplo, durante a pandemia, muitas notícias falsas sobre vacinas espalharam-se rapidamente, em grande parte porque exploravam medos e desconfianças já existentes em parte da população.

Essa conexão entre polarização, fake news e a influência das emoções é um sinal de alerta para os tempos em que vivemos. No ambiente jurídico, assim como na política, o poder de um apelo emocional bem estruturado pode ter consequências significativas. Nos EUA, o voir dire é uma ferramenta para identificar e lidar com essas influências antes mesmo que o julgamento comece. No Brasil, onde não há essa estrutura, há uma dependência maior da habilidade do advogado de humanizar o caso e cativar o júri durante o julgamento.

Essas diferenças levantam uma questão: se a sociedade americana, que possui mecanismos para avaliar vieses, ainda lida com os efeitos corrosivos da polarização e das fake news, como o Brasil pode proteger o sistema judicial das influências externas que possam comprometer julgamentos? Talvez uma abordagem equilibrada seja o caminho. Nos dois países, é essencial que os profissionais do direito apresentem seus casos de forma ética e responsável, conscientes de que o excesso de apelo emocional, quando desvinculado dos fatos, pode enfraquecer a justiça. Mentiras e distorções minam a democracia e enfraquecem a confiança nas instituições.

Ainda assim, a democracia já enfrentou propagandas enganosas e mentiras no passado. O que mudou é a velocidade e a intensidade da disseminação das fake news. Em questão de minutos, uma mentira pode ser compartilhada por milhares de pessoas, deixando marcas mesmo após ser desmentida. Exemplo claro disso foi a onda de desinformação sobre fraudes em eleições que circulou nos Estados Unidos em 2020, mesmo após inúmeras verificações de que o processo eleitoral foi seguro e confiável.

O futuro da democracia depende da nossa capacidade coletiva de discernir entre emoção e fato, de questionar as informações que consumimos e de valorizar a transparência. É necessário, também, que as redes sociais e os meios de comunicação invistam em processos de verificação rigorosos. As redes de verificação de fatos têm um papel crucial nesse processo e, em alguns casos, como no Facebook e no Twitter, já atuam com mais rigor em parceria com agências de checagem independentes. Esses mecanismos são fundamentais para reduzir o impacto das fake news.

O caminho para um sistema mais justo está em uma educação voltada para o pensamento crítico, que incentive a análise cuidadosa das informações, tanto no sistema jurídico quanto na sociedade em geral. 

A resistência ao fortalecimento de uma educação voltada para o pensamento crítico e a análise cuidadosa das informações é multifacetada e revela tanto uma falta de preparação quanto interesses estratégicos de certos grupos. Em muitos casos, partidos e figuras políticas percebem que uma sociedade com capacidade crítica mais aguçada representa uma ameaça direta às narrativas simplistas e à manipulação ideológica. O pensamento crítico permite aos indivíduos questionar não apenas a veracidade das informações que consomem, mas também as intenções de quem as produz e as dissemina. Para líderes ou partidos que dependem de discursos polarizadores e de simplificações para mobilizar suas bases, um eleitorado mais questionador é um obstáculo.

Parte dessa resistência também é cultural. Em várias sociedades, o sistema educacional tem foco na memorização e na reprodução de conteúdo, com pouca ênfase em habilidades como análise crítica, argumentação e reflexão independente. Esse formato pode inibir a capacidade dos indivíduos de questionar ideias pré-estabelecidas e, por consequência, de avaliar com rigor as informações e argumentos que recebem. Em contextos onde o sistema educacional não valoriza o desenvolvimento da capacidade de questionamento, o pensamento crítico tende a ser visto como uma habilidade desnecessária ou até subversiva.

Ademais, o pensamento crítico desafia certas "zonas de conforto" individuais e coletivas. Pessoas que cresceram em ambientes onde crenças e valores foram transmitidos sem questionamento muitas vezes se sentem ameaçadas diante da possibilidade de confrontar essas ideias. Esse desconforto leva muitos a preferirem manter uma postura de aceitação passiva, o que, no longo prazo, contribui para a perpetuação de crenças infundadas e preconceitos.

Para reduzir essa resistência, é essencial que a educação voltada para o pensamento crítico seja introduzida de forma gradual e sensível, especialmente em sociedades que não estão acostumadas com essa prática. Ao invés de confrontar diretamente as crenças existentes, essa educação pode focar no desenvolvimento de habilidades de análise e de resolução de problemas em contextos práticos, ajudando os indivíduos a perceber os benefícios de uma abordagem crítica sem que isso pareça uma ameaça direta a seus valores.

Além disso, as políticas públicas devem investir em treinamentos para professores e na reformulação curricular, incentivando uma educação que valorize a curiosidade, o debate e a análise criteriosa desde a infância. Com o tempo, uma geração de cidadãos mais conscientes e informados começa a influenciar positivamente a sociedade como um todo, criando uma cultura que valoriza o conhecimento e o questionamento construtivo.

Livrar-se completamente da resistência ao pensamento crítico talvez não seja possível, pois sempre existirão aqueles que preferem as certezas confortáveis às complexidades da dúvida e da análise. No entanto, com uma abordagem gradual e consistente, é possível promover uma mudança cultural que fortaleça o pensamento crítico e diminua o poder da desinformação e das manipulações políticas. Essa transformação é essencial para a construção de uma sociedade mais justa e resiliente, capaz de resistir a apelos simplistas e divisivos, protegendo, assim, os pilares da democracia.

Enfim, essas diferenças me levam a refletir sobre o papel das emoções e dos contextos pessoais no campo do direito. Nos tribunais americanos, o trabalho de persuasão começa antes mesmo de o julgamento se iniciar, preparando o terreno para uma maior aceitação do caso. No entanto, essa manipulação emocional, que também pode ser explorada por narrativas persuasivas ou por informações enganosas, é um reflexo de um desafio maior que se apresenta para as democracias atuais.

A questão é se a democracia sobreviverá a essa era de desinformação e polarização. A resposta depende de nossa capacidade coletiva de buscar a verdade e de encorajar debates abertos que, mesmo difíceis, contribuam para uma sociedade informada e madura. Em última análise, uma democracia forte exige uma sociedade que não foge das complexidades dos fatos e valoriza o compromisso com a justiça e a verdade. É nesse equilíbrio delicado — entre o apelo emocional e o rigor da verdade — que se encontra a chave para uma justiça mais íntegra e uma sociedade realmente democrática.


JAMES MCSILL 4 de novembro de 2024
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