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Histórias locais para uma audiência mundial

Atrás das câmeras ou nos bastidores de uma sala de roteiro, há sempre um momento em que a história deixa de ser apenas uma sequência de cenas e se transforma em algo vivo, pulsante, carregado de verdade e emoção. Essa é a essência do storytelling autêntico, aquele que não apenas entretém, mas conecta, provoca reflexões e gera impacto real no pensamento humano.

Este ano, mais uma vez, embarco para o Quênia para atuar como consultor de uma nova produção da Netflix, algo que, para mim, vai muito além do trabalho. Voltar a esse solo africano, depois do sucesso global de Country Queen, é reafirmar o poder de histórias locais contadas com qualidade mundial. E mais do que isso: é continuar a explorar narrativas que têm um cunho social profundo, aquelas que fazem com que as pessoas não apenas assistam, mas sintam, reflitam e, quem sabe, ajam.

A Importância de Histórias Locais com Impacto Global

Se há algo que o cinema e a televisão nos ensinam, é que as histórias mais universais são, paradoxalmente, as mais locais. Quando um enredo é profundamente enraizado em uma cultura, ele não se torna menos compreensível para o público global — pelo contrário, ele traz uma verdade única que transcende fronteiras.

O que faz uma série ambientada no Quênia, no Brasil ou na Índia tocar corações em Londres, Nova York ou Tóquio? Não são apenas os conflitos humanos universais, mas a riqueza de detalhes culturais que a tornam autêntica. São os costumes, os dilemas morais, as paisagens, os sotaques e os silêncios carregados de significado. É a alma daquela sociedade exposta em sua plenitude.

Foi exatamente isso que fez Country Queen (Netflix) ressoar em 190 países. A série foi pensada e escrita por roteiristas quenianos mentorados pelo McSill Story Studio, interpretada por atores quenianos, mas com uma abordagem narrativa que respeitou as exigências técnicas e emocionais de uma produção de escala global. Meu papel ali, como consultor, foi o de ajudar a lapidar a história para que ela mantivesse sua essência enquanto se tornava uma experiência cinematográfica inesquecível para qualquer espectador, em qualquer parte do mundo.

Agora, retorno ao Quênia para mais uma produção. O desafio? Criar mais uma história que, mesmo profundamente local, seja impossível de ignorar no cenário global.

Por Que Histórias de Cunho Social Me Fascinam?

No centro de cada boa história, há uma verdade desconfortável.

Desde que comecei a trabalhar com storytelling, sempre fui atraído pelas histórias que têm um impacto social profundo. A ficção pode entreter, sim, mas seu poder real está na capacidade de influenciar a percepção e até transformar a sociedade.

Se olharmos para o passado, veremos como o cinema e a televisão moldaram debates essenciais sobre racismo, pobreza, desigualdade de gênero, guerra, imigração e tantos outros temas. Algumas das narrativas mais poderosas que já vimos não apenas nos entreteram, mas nos fizeram questionar o mundo em que vivemos.

📌 "Do the Right Thing" (1989), de Spike Lee, não foi apenas um filme sobre um bairro no Brooklyn — foi um retrato cortante da tensão racial nos Estados Unidos.

📌 "Cidade de Deus" (2002), de Fernando Meirelles e Kátia Lund, não foi apenas uma história sobre delinquência juvenil no Brasil — foi um espelho brutal de uma realidade social que muitos preferiam ignorar.

📌 "When They See Us" (2019), de Ava DuVernay, não foi apenas uma minissérie sobre cinco adolescentes injustiçados — foi um manifesto contra um sistema jurídico falho e racista.

Histórias como essas mudam percepções. Elas fazem o espectador sentir a dor, a revolta, a esperança.

E é exatamente esse tipo de narrativa que me fascina: aquelas que não apenas contam algo, mas fazem com que o espectador se sinta parte daquilo.

No Quênia, estou envolvido em uma série que traz à tona conflitos sociais profundos e uma história humana que precisa ser contada. O desafio é transformá-la em algo que possa ser apreciado tanto por um morador de Nairóbi quanto por um espectador europeu ou asiático — sem perder sua verdade.

O Futuro do Storytelling e o Papel da Tecnologia

Estamos em uma era em que a inteligência artificial e os algoritmos começam a participar ativamente da criação de narrativas. Máquinas já conseguem gerar roteiros, simular diálogos e até prever quais enredos terão mais sucesso com determinados públicos.

Mas aqui está a questão: por mais sofisticadas que essas tecnologias sejam, elas ainda não conseguem capturar a alma humana.

A IA pode escrever uma cena emocionante, mas não sabe o que é crescer em um bairro periférico, sentir o peso da exclusão, carregar o medo de uma injustiça.

A IA pode gerar diálogos críveis, mas não compreende o silêncio carregado de significado entre duas pessoas que viveram uma tragédia juntas.

O storytelling do futuro não será uma luta entre humanos e tecnologia. Será um jogo de equilíbrio. Os criadores que souberem combinar a inovação tecnológica com a profundidade emocional da experiência humana serão os que definirão as próximas grandes histórias.

E isso nos leva ao ponto final deste artigo: para onde estamos indo?

O Que Resta Para os Contadores de Histórias?

Neste exato momento, enquanto estas palavras são escritas, histórias estão sendo criadas, reimaginadas e esquecidas em todo o mundo. Algumas serão efêmeras, desaparecerão antes mesmo de alcançar um público significativo. Outras encontrarão o seu caminho, resistirão ao tempo e se tornarão parte do imaginário coletivo, moldando percepções, despertando debates, influenciando gerações.

Mas o que determina esse destino? Como saber qual história será a próxima a deixar uma marca profunda no pensamento humano?

A resposta? Não podemos saber.

O impacto de uma história não está apenas no que ela diz, mas quando é contada, no contexto em que surge, na forma como ressoa com as inquietações e esperanças do seu tempo. Há histórias que, quando lançadas, são ignoradas, mas décadas depois são redescobertas e ganham nova relevância. Outras, que pareciam destinadas ao esquecimento, de repente encontram eco em uma geração diferente.

O que podemos afirmar com certeza é que as histórias que mudam o mundo são aquelas que não têm medo de serem contadas.

Os grandes narradores não são apenas aqueles que dominam a técnica, mas aqueles que têm a coragem de explorar os temas incômodos, de dar voz a quem foi silenciado, de iluminar realidades que muitos prefeririam ignorar. São aqueles que, ao invés de moldar suas histórias para agradar o mercado, moldam o mercado para que ele aceite histórias que precisam ser contadas.

E é por isso que volto ao Quênia.

Não apenas para trabalhar em mais uma série, mas para ajudar a lapidar uma narrativa que tem algo a dizer ao mundo. Para contribuir com um projeto que não será apenas assistido, mas sentido. Que provocará discussões, incômodos, reflexões.

Porque a verdade é que o storytelling nunca foi apenas sobre entretenimento.

Contamos histórias para dar sentido à existência. Para desafiar as normas. Para preservar memórias. Para imaginar futuros possíveis.

Seja no teatro grego da Antiguidade, nas fogueiras das aldeias africanas, nos manuscritos renascentistas, nos romances do século XIX ou nas séries da Netflix, o storytelling sempre foi a forma mais poderosa de transmitir conhecimento, cultura e emoção.

O meio pode mudar, as plataformas podem evoluir, mas a necessidade humana por histórias permanece.

E nesse cenário em que a tecnologia avança, em que a inteligência artificial se torna cada vez mais capaz de estruturar narrativas previsíveis e agradáveis ao público, a pergunta mais importante para os contadores de histórias não é se teremos espaço no futuro — mas como podemos continuar relevantes.

A resposta está nas histórias que apenas os humanos podem contar.

A inteligência artificial pode gerar roteiros eficientes, diálogos realistas, cenas bem encadeadas. Mas não sabe o que significa sentir medo da exclusão, carregar o peso de uma injustiça, amar algo ou alguém de forma incondicional.

A IA pode prever quais histórias têm maior probabilidade de sucesso comercial. Mas não pode saber o que acontece dentro de quem assiste.

E é por isso que, enquanto houver histórias que toquem os espectadores de maneira visceral, enquanto houver narradores que mergulhem nas profundezas da experiência humana para trazer à tona verdades que precisam ser ditas, haverá um papel insubstituível para o contador de histórias.

Por isso, cada projeto que aceito, cada série que ajudo a moldar, cada narrativa que trabalho, carrega esse compromisso: criar algo que não seja apenas consumido, mas sentido.

Seja no Quênia, no Brasil, no Japão ou em qualquer lugar do mundo, minha missão continua a mesma: contar histórias que façam o espectador olhar para dentro e, talvez, enxergar algo que nunca havia percebido.



JAMES MCSILL 29 de janeiro de 2025
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A importância do autor; pois o que nos conecta são as histórias!