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O Sabor do Trabalho Original

Certa vez, navegando pela internet, me deparei com uma comparação curiosa, mas tão verdadeira, sobre o trabalho humano e as tentativas de substituí-lo pela tecnologia: “É como comer algo que se parece com um prato tradicional, mas que, ao provar, não tem nem o tempero nem a alma do original.” A analogia me fisgou. Quem contou a história se referia a uma feijoada, mas pensei logo em algo mais exótico: um prato como o cuscuz marroquino. Imagina, você olha a travessa: o prato tem os legumes, o caldo espesso, o colorido certo – tudo o que parece te preparar para uma experiência autêntica. Mas quando leva a primeira garfada à boca, percebe que a alma do cuscuz, o que dá identidade e textura ao prato, está ausente. Como se fosse uma miragem, uma ilusão.

Essa comparação não deixa de ser uma forma exata de descrever como modelos de inteligência artificial, mesmo avançados, funcionam no mercado de trabalho. O cuscuz da comparação representa o trabalho humano original, aquele que carrega o peso de habilidades, tradições e toques que só o tempo e a experiência ensinam. A cópia da IA é como um prato onde tudo parece estar no lugar – ele até convence à primeira vista. Mas, à primeira prova, falta algo essencial: o toque humano, a intuição, o tempero de quem sabe a diferença entre fazer e entender o que está fazendo.

Ao longo das últimas décadas, a humanidade se acostumou a ver novas tecnologias chegando como uma espécie de maré alta: incontrolável, poderosa, às vezes até devastadora, mas capaz de trazer novidades e um tipo de promessa futurista. Lembrando dos primeiros teares mecânicos da Revolução Industrial, que substituíram os artesãos da tecelagem, vemos que o “cuscuz da IA” é, em certo sentido, uma repetição do que já vimos. Aqueles tecelões eram artesãos que dedicavam anos para aperfeiçoar suas habilidades, controlando a qualidade e personalizando cada peça com toques quase artísticos. A automação dos teares mecânicos arrancou deles esse domínio, entregando à produção em massa algo rápido e barato, mas quase sem alma. Tudo se resumia a quantidades.

Quando penso nisso, lembro-me de uma amiga que é redatora. No último ano, ela se viu competindo contra modelos de linguagem avançada, IA que promete criar artigos e relatórios com a mesma habilidade que alguém treinado. Ela riu quando conversamos sobre isso:

— É, parece mesmo cuscuz sem sabor — ela disse, me encarando com um sorriso que misturava ironia e um pouco de pesar. — Eles geram um texto que até convence, mas, no final, você percebe que ele está vazio. Não tem aquele toque que faz uma pessoa rir, refletir ou simplesmente entender que, por trás de tudo, existe outra pessoa de verdade.

E ela tinha razão. Quando o leitor consome algo produzido por IA, é como provar um prato de cuscuz feito só com os ingredientes básicos. Saciável, talvez. Mas o trabalho de verdade, aquele que transmite alma e intuição, tem uma profundidade que IA ainda não alcança. Essa amiga redatora, por exemplo, tem o costume de adaptar seu estilo conforme a natureza do cliente, ou até de ajustar o tom com base em uma conversa rápida. Cada linha que ela escreve tem uma intenção, um contexto que se adapta e molda, algo que uma máquina não consegue replicar por completo.

Pensei também em uma outra metáfora, mais singela ainda: é como um buquê de flores de plástico. Ele é bonito, agradável aos olhos, mas sem cheiro, sem frescor. Ele pode enfeitar, pode até se passar por algo verdadeiro de longe, mas é só ao toque e ao cheiro que o segredo é revelado. Ele não é vivo, não é real. Ele é uma simulação.

Nosso cuscuz “simulado”, assim como as flores de plástico, pode até satisfazer uma demanda crescente de quantidade, mas esconde o verdadeiro problema: o trabalho humano e toda a riqueza que ele agrega correm o risco de se transformar em “produtos simulados”. A pergunta é, será que isso é o que queremos? A ironia é que a maioria das pessoas que “saboreiam” o trabalho da IA não têm a experiência para notar o que falta. Para elas, o “cuscuz sem tempero” pode parecer bom o suficiente – até o dia em que provarem o prato original e notarem a diferença.

Enquanto pensava sobre tudo isso, voltei a lembrar da comparação inicial que eu havia lido, e ela parecia ainda mais certeira. Não porque a tecnologia é incapaz, mas porque, no fundo, ainda tem um longo caminho até realmente substituir o trabalho humano de forma integral. Ela precisa, por exemplo, aprender a entender o contexto e intuição. Afinal, todo trabalho carrega um toque pessoal que é, de certa forma, invisível: é o sabor escondido, o tempero invisível que só um ser humano é capaz de colocar.

Enquanto refletia sobre o poder da tecnologia e essa constante tentativa de reproduzir o trabalho humano, me peguei pensando nas primeiras máquinas da Revolução Industrial e no impacto que tiveram. Imagino que, para aqueles artesãos de séculos atrás, ver seu trabalho ser substituído por máquinas de uma hora para outra deve ter sido uma experiência brutal. Muitos trabalhavam no aconchego de suas casas, com horários flexíveis e um senso de autonomia que hoje nos parece quase um luxo. Transformavam matéria-prima em arte, tecidos em verdadeiras expressões de habilidade, até o dia em que viram tudo isso se perder para máquinas que, embora eficientes, eram totalmente desprovidas do toque humano.

Esses primeiros trabalhadores, que operavam teares manuais e outras ferramentas artesanais, tinham domínio completo de suas técnicas. Cada peça que produziam era única, carregava um toque de personalidade e um detalhe específico que não era encontrado em nenhuma outra. Mas então vieram os teares mecânicos, depois as linhas de montagem e as fábricas, e, com elas, um tipo diferente de produção. De repente, o trabalho artesanal não parecia mais necessário; aqueles que dedicaram anos ao ofício, agora, eram apenas operadores de máquinas, apertando botões e seguindo uma linha de produção que substituía seu talento e sua autonomia por eficiência e velocidade.

A transição não foi nada fácil. Sem escolha, esses trabalhadores foram deslocados para fábricas onde suas habilidades únicas se tornaram irrelevantes. A linha de produção, mais rápida e previsível, exigia que eles trabalhassem mais e ganhassem menos. Mas eles sentiam falta de algo essencial: a liberdade de criar, de aplicar o que aprenderam durante anos, o orgulho de entregar um trabalho do qual podiam se orgulhar. Esse sentimento de perda era algo que as máquinas jamais poderiam substituir. Para esses trabalhadores, o que estava em jogo era muito mais do que o valor financeiro de cada peça produzida – era o valor do trabalho em si, o respeito que ele representava.

Hoje, é fácil olhar para trás e imaginar que eles apenas não se adaptaram ao progresso. Mas é um pensamento simplista. Aqueles artesãos não rejeitavam as máquinas por medo do novo; eles resistiam porque sentiam que estavam sendo desvalorizados, que o significado do trabalho estava se transformando em algo vazio. Eles não queriam que a arte que dominavam fosse tratada como mais uma peça numa engrenagem impessoal. No fundo, resistiam porque sabiam que o que faziam era especial, e não queriam ver seu trabalho ser reduzido a algo mecânico.

E, observando os tempos atuais, vejo uma situação semelhante se desenrolando. A tecnologia se desenvolve a passos largos, e nós, assim como aqueles artesãos do passado, estamos vendo nosso trabalho passar por mudanças que não controlamos. Ferramentas de inteligência artificial são as novas “máquinas”, prometendo mais produtividade e acessibilidade, mas, assim como os teares mecânicos, fazem isso de forma a simplificar e uniformizar o trabalho. Nos dias de hoje, o impacto é sentido principalmente por quem trabalha com a criação – designers, artistas, redatores, músicos. De repente, tudo que exige criatividade e intuição parece ter uma versão digital que se “assemelha” ao original, mas que, na verdade, não passa de uma imitação sem alma.

Penso na conversa que tive com uma amiga que é ilustradora. Ela contou, com um misto de indignação e tristeza, sobre como suas obras estavam sendo digitalizadas e copiadas, muitas vezes sem seu consentimento, para que ferramentas de IA pudessem replicar seu estilo. Para ela, cada traço de seu pincel tinha um significado, cada detalhe contava uma história. A ideia de ver uma máquina reproduzindo sua arte, sem entender a essência que ela colocava em cada linha e em cada cor, a deixava completamente desanimada.

— Não é que eu seja contra a tecnologia, entende? — disse ela, os olhos brilhando de frustração. — Mas não quero que meu trabalho, que faço com tanto cuidado, seja tratado como um padrão que qualquer máquina pode criar.

Senti a dor dela, a mesma indignação que talvez aqueles artesãos do passado sentiram. A tecnologia pode ser uma ferramenta, mas, quando passa a ditar o ritmo e o valor do trabalho, o que era arte se torna apenas produção. Hoje, artistas e profissionais criativos estão, em certo sentido, enfrentando o mesmo desafio. Eles não estão contra o avanço tecnológico; estão preocupados com o que ele significa para o valor do trabalho humano. Eles querem que seu talento, o toque que só eles podem oferecer, seja respeitado.

Talvez o que falta, tanto hoje como no passado, seja uma visão que combine o melhor dos dois mundos: o poder da tecnologia e a sensibilidade humana. Mas a realidade é que a indústria ainda opera com a mesma lógica de séculos atrás: produtividade e lucro, com pouca preocupação pelo que se perde no processo.

Esses paralelos me levam a pensar: será que estamos, novamente, deixando o valor humano ser obscurecido pelo brilho da automação? A mesma luta dos artesãos pela preservação do valor do trabalho qualificado se repete hoje, de forma diferente, mas com a mesma essência.

JAMES MCSILL 1 de novembro de 2024
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