No apartamento de Dona Marieta, uma Smith-Corona que range
A cena poderia ter saído de um filme de época, mas aconteceu numa tarde chuvosa de abril, no bairro do Flamengo. Aos 78 anos, a romancista Marieta Pimenta limpa com esmero a carcaça cinzenta da sua máquina de escrever Smith-Corona. Enquanto o barulho ritmado do carro-chefe dos anos 70 ecoa pelo corredor, o neto – designer de aplicativos – digita furiosamente no computador portátil, munido de um assistente de texto alimentado por inteligência artificial.
“Isso aqui é que é escrever de verdade”, rosna Dona Marieta sem tirar os olhos do rolo de fita, certa de que cada teclar é ato de coragem. O neto, Lucas, responde com o mesmo desdém que exibe quando alguém lhe pede para “mandar zap”: “Vó, as editoras não querem mais páginas amareladas. Querem histórias que cheguem rápido às pessoas.”
Não se trata de uma discussão familiar inocente; é, em miniatura, o confronto de dois mundos que disputam o futuro da escrita. De um lado, quem confia na longevidade do ofício manual; do outro, quem enxerga na automação uma ponte para públicos que já vivem conectados 24 horas por dia. O tempo corre para ambos – e não tem botão de rebobinar.
A longa marcha das ferramentas literárias
Ferramentas para produzir texto nunca foram neutras. A pena de ganso libertou monges dos calígrafos, a linotipia multiplicou jornais, o processador de texto aposentou o corretivo líquido. Cada etapa foi ladeada por vozes que previram o colapso da “verdadeira escrita”. A novidade, agora, é que o salto tecnológico não afeta apenas o gesto de digitar, mas o próprio processo criativo: algoritmos sugerem parágrafos, rimas, ganchos narrativos e, não raro, até títulos.
No fim de 2022, quando a OpenAI lançou o ChatGPT, a curiosidade mundial transformou um protótipo em viral. Em dois meses, a plataforma somava mais de 100 milhões de usuários, gerando uma onda de experimentos em redações, salas de aula e escritórios de publicidade. O sucesso estrondoso disparou campanhas para adotar – ou boicotar – a tecnologia, e trouxe junto os inevitáveis questionamentos sobre direitos autorais, qualidade e emprego.
Quem testemunhou o pulo da máquina de escrever para o computador lembra de medos semelhantes: “Se basta apertar delete, ninguém mais pensará antes de escrever.” Décadas depois, o temor se revela infundado; a facilidade de apagar linhas não destruiu a literatura. Pelo contrário: ampliou-lhe o fôlego. A pergunta que paira hoje é se a colaboração com sistemas preditivos repetirá o feito ou inaugurará uma era de produção em massa tão homogênea que leitores desistirão de distinguir uma voz da outra.
Redações que convidaram o algoritmo para a mesa
Nenhum laboratório ilustra melhor a convivência conflituosa entre humano e máquina do que as redações jornalísticas. Pressionados a entregar informação em tempo quase real e com orçamentos enxutos, muitos editores viram na geração automática de textos um alívio para tarefas repetitivas.
A Associated Press é caso emblemático. Desde 2014, a agência utiliza softwares que transformam dados de balanços corporativos em notícias curtas; em 2023, gerava automaticamente mais de 3 000 relatórios de resultados por trimestre – dez vezes mais do que a equipe humana conseguia redigir antes da automação. A lógica é simples: liberar repórteres para investigações e reportagens extensas, enquanto o algoritmo cuida do arroz-com-feijão numérica que, embora essencial, raramente exige olhar literário.
A experiência não passou incólume. Em agosto de 2023, o grupo Gannett – dono de jornais regionais nos Estados Unidos – suspendeu um sistema semelhante após leitores exporem, em redes sociais, crônicas esportivas geradas por IA cheias de repetição e metáforas mecânicas. O incidente virou alerta global: softwares não corrigem falta de dados, nem entendem vibração do estádio; apenas simulam. E, quando simulam mal, a falha viraliza.
“É a mesma história de sempre”, explica Philana Patterson, editora-assistente da AP, em entrevista por vídeo. “Automação sem supervisão é receita para desastre; automação bem supervisionada, porém, nos devolve horas preciosas.” A agência agora adota um protocolo triplo: treinamento dos modelos em bases auditadas, conferência humana antes da publicação e transparência sobre a origem do texto.
A trincheira da literatura e o espelho dos processos
Se o jornalismo abraçou – com ressalvas – a automatização, o mercado editorial caminha em passos mais cautelosos. Em novembro de 2024, a HarperCollins fechou acordo com uma empresa de tecnologia para permitir o uso de parte de seu catálogo no treinamento de modelos generativos. Detalhes financeiros não foram divulgados, mas executivos garantem que a medida visa “novas experiências narrativas”, não substituição de autores.
Do outro lado do ringue, o New York Times entrou nos tribunais contra OpenAI e Microsoft, alegando violação de direitos autorais por uso de artigos no treinamento de modelos. A disputa, que segue nos tribunais federais, é observada com lupa por editoras e autores independentes: se o Times prevalecer, royalties poderão se tornar moeda obrigatória para quem queira alimentar algoritmos com material protegido.
Há quem defenda acordos como alternativa a litígios caros. “Os modelos precisam de palavras; nós, de novos leitores”, diz um agente literário londrino que negocia licenças em massa. “Se o algoritmo puder indicar meus autores em voz alta para milhões, por que não?” Mas críticos replicam que ceder acervos sem controle pode baratear o texto a ponto de desincentivar carreiras. “Pagar centavos por parágrafo é institucionalizar a precariedade”, alerta a romancista espanhola Lucía Pascual, que mantém coluna no El País.
As cláusulas que protegem – e amarram – roteiristas
Nenhum grupo profissional discutiu tanto o impacto da IA em 2023 quanto os roteiristas de Hollywood. O contrato coletivo fechado após greve histórica incluiu cláusulas inéditas: o estúdio deve revelar se repassou material criado ou editado por IA e não pode obrigar o escritor a usar programas do tipo.
A vitória foi parcial. A Writers Guild of America não proibiu os estúdios de alimentarem modelos com roteiros passados; apenas reservou o direito de contestar a prática judicialmente. Para muitos, é batalha de longo prazo. “Sei que meus diálogos estão num servidor em algum lugar”, lamenta a roteirista de séries Annie Cheng. “Só espero que, quando o software cuspir algo parecido, também cuspam o meu nome nos créditos.”
Novos autores, novas táticas: o caso de Aline Gontijo
Para além das grandes corporações, a discussão ocorre em casa, na tela de escritores independentes. A mineira Aline Gontijo, 34 anos, publicou em 2024 um romance experimental escrito a quatro mãos com um modelo de linguagem aberto. Alimentou o sistema com diários de viagem, poemas de Hilda Hilst e manchetes de jornais locais. Recebeu trechos de texto que depois editou, embaralhou e reescreveu, até chegar a uma colagem fluida entre voz humana e sintaxe artificial.
“Chama-se curadoria”, explica. “A IA devolveu combinações que nunca me ocorreriam sozinha. Eu separei joio de trigo.” A obra vendeu cinco mil exemplares em pré-venda, número modesto para best-seller, mas considerável para ficção literária. “Metade dos leitores veio pela curiosidade; a outra metade ficou pela história”, comemora.
Críticos apontaram “frieza” em certos trechos, mas elogiaram a ambição estrutural. Para Aline, a polêmica é bem-vinda: “Quanto mais perguntam onde termina a máquina e começa o humano, mais a narrativa mostra que o limite é móvel.”
O público muda mais rápido que o autor
Pesquisas de 2025 revelam que 48 % dos leitores latino-americanos consomem ao menos um texto gerado por IA por semana, muitas vezes sem perceber. Livros com capa vibrante e nome de gente na lombada continuam a encantar prateleiras; mas, online, resumos, newsletters e artigos híbridos se espalham a uma velocidade que autores tradicionais não conseguem replicar sozinhos.
É aí que ressurge o dilema moral. Se a ferramenta acelera entrega, puxa para baixo a remuneração? O analista de mercado Felipe Drumond lembra que a invasão do streaming não reduziu a quantidade de séries – aumentou-a de forma exponencial. “O paradigma muda: dinheiro sai do volume de venda e entra na relação com o público”, diz. Escritores que entendem a dinâmica criam comunidades pagas, clubes de leitura virtuais, versões estendidas de capítulos para assinantes. Os que recusam, dependem da sorte – ou de um prêmio literário que pague contas.
Transparência e regulação: a maré europeia
Do outro lado do Atlântico, legisladores concluíram o primeiro grande pacote de normas para inteligência artificial. O chamado AI Act, aprovado em Bruxelas no início de 2024, exige que qualquer conteúdo alterado ou criado por IA seja rotulado como tal, salvo exceções artísticas ou jornalísticas específicas.
Para editores, a exigência é faca de dois gumes: clarifica responsabilidades, mas empilha burocracia. A ideia de um “passaporte de conteúdo” – QR Code que revela se texto foi gerado, editado ou apenas traduzido por máquina – assusta equipes já enxutas. Por outro lado, pode limitar as fake news que inundam redes, num momento em que confiança despenca.
Estados Unidos avançam a passos diferentes, com iniciativas estaduais e processos judiciais substituindo legislação federal. No Brasil, o marco regulatório da IA trancado no Congresso tenta equilibrar fomento à inovação e defesa de direitos autorais. Até lá, vale a regra de ouro jornalística: “Transparência primeiro; desculpa depois.”
O temor da padronização – mito ou prenúncio?
Críticos insistem que a ubiquidade de sistemas preditivos terminará por tornar a literatura um amontoado de frases previsíveis. A história, porém, oferece contraexemplo: antes da IA, a padronização já era doença crônica de manuais corporativos, discursos políticos e até romances que seguiam a mesma receita de três atos.
A diferença é que, agora, o leitor pode identificar o pastiche em segundos. O risco recai sobre quem replica fórmulas esperando passar despercebido: os algoritmos de detecção de redundância e plágio evoluem com a mesma rapidez que os geradores de texto. Em última instância, a ferramenta obriga o escritor a ser mais criativo, não menos. Quem não reinventa o próprio som é substituível – por outra pessoa ou por um robozinho barulhento.
Quando a máquina tropeça: casos e aprendizados
Falhas não faltam. Além do fiasco esportivo da Gannett, robôs já transformaram nomes de cidades em palavrões, traduziram “silver” para “prata” num manual sobre mercúrio e confundiram “Jaguar” (animal) com “Jaguar” (carro) num obituário. Nenhum software entende contexto como cérebro humano – pelo menos, não ainda.
A Associated Press contorna o perigo combinando filtros de exceção e revisão humana. Editoras americanas pedem cláusulas de responsabilidade aos desenvolvedores: se um trecho injurioso escapar, quem paga a indenização? Essas perguntas moldarão, nos próximos anos, custos de seguro e políticas de compliance.
Para o leitor, erros gritantes funcionam como vacina: lembram que ainda existe divisor – poroso, mas real – entre original e artefato. “Falhas são faróis”, brinca o linguista brasileiro André Malfatti. “Mostram onde a ponte cede; e onde o pedestre continua indispensável.”
A pedagogia da ferramenta
Enquanto adultos discutem prerrogativas, escolas experimentam. Professores de redação da rede pública de São Paulo pedem aos alunos que redijam rascunho no caderno e, depois, alimentem a IA com a mesma pergunta para comparar versões. O exercício expõe vícios sintáticos e amplia vocabulário.
Críticos temem que estudantes se acomodem e copiem. Mas a professora Elaine Moura observa o inverso: “Quando veem o texto do robô, os adolescentes torcem o nariz: ‘Ficou meio sem graça’. Então buscam arriscar imagens que a máquina não cria.” Para ela, a dinâmica é desafio positivo, como a calculadora foi para a matemática – ninguém denuncia que a ferramenta matou o raciocínio algébrico, porque evidências mostram o contrário.
E quando a IA é o escritor fantasma?
No submundo do ghostwriting, há quem já venda pacotes que prometem “livro em 72 horas”, gerado e revisado por IA. Plataformas de autopublicação lutam para filtrar enxurrada de títulos inexistentes, culinários que recomendam água sanitária como tempero ou romances que mudam o nome do protagonista a cada capítulo.
Os maiores varejistas on-line ampliam as exigências de verificação e limitam o número de títulos por conta. A medida provoca rugido de indignação em autores legítimos, mas livra leitores de catálogos infestados. No balanço, prevalece o princípio da reputação: quem produz valor dura; quem caça cliques evapora.
Quanto vale a frase?
O debate sobre remuneração divide a categoria. Se um algoritmo ajuda a escrever, deve-se pagar menos pelo texto? Copidesques temem desvalorização; editores argumentam que a produtividade aumenta – o rendimento total pode subir. A polêmica lembra a música digital: royalties encolheram, shows multiplicaram-se. Talvez o futuro da literatura inclua pacotes híbridos de leitura em tempo real, oficinas de bastidores e financiamento coletivo.
Para autores iniciantes, a barreira de entrada cai – qualquer um pode prototipar contos, testar trechos, avaliar receptividade. Para veteranos, o desafio é manter vantagem: autoridade, profundidade e estilo próprio. Um soneto de IA não derruba Fernando Pessoa; mas pode obscurecer poetas que ainda lutam para encontrar voz.
O leitor, juiz de última instância
Em 2025, pesquisas qualitativas indicam que a maioria dos leitores não se importa se um texto envolveu IA, desde que satisfaça curiosidade ou emoção. Mas 62 % declaram sentir “leve desconforto” ao imaginar que a obra foi inteiramente gerada por máquina. Isso sugere que a colaboração híbrida é, por ora, caminho mais palatável: autor na cabine de comando, algoritmo nas engrenagens invisíveis.
Empresas correm para exibir selos de “revisão humana” ou “criado com apoio de IA”, numa tentativa de equilibrar franqueza e marketing. Ninguém sabe qual carimbo venderá mais livros – só o tempo dirá.
A frase que ecoa
Em teleconferência recente, um editor resumiu o dilema: “Ferramentas não sofrem de bloqueio criativo. Pessoas, sim. A pergunta é quem saberá combinar o frio da máquina com o fogo da experiência.” A imagem circulou por grupos de autores como senha de reflexão.
Voltamos ao apartamento de Dona Ruth: Lucas mostra à avó uma cena que o software sugeriu, sobre uma mulher que conversa com a própria máquina de escrever. Ruth ri, reconhece ironia – e, em vez de rejeitar o trecho, ajusta-lhe o ritmo, troca dois adjetivos, injeta memórias da infância na Bahia. O parágrafo renasce. Não é de Lucas, não é de Ruth, não é do robô. É soma.
Quem não aprende, assina a própria nota de rodapé
A cada invenção que simplificou o ato de escrever – da prancheta ao tablet – levantou-se o coro dos desconfiados. Mas nenhuma tecnologia tornou obsoleto o desejo humano de contar histórias. O que muda é o repertório de meios. Hoje, a distância entre ideia e leitor mede-se em cliques; amanhã, talvez em piscadelas de retina aumentada.
No fim, o enunciado permanece: quem não aprende a usar as novas ferramentas acaba sendo usado por elas – ou esquecido. Esse destino, tão temido, não é decreto de máquina; é escolha do autor. O teclado pode ranger ou brilhar; o que importa é a ousadia de empunhá-lo. Enquanto houver quem transforme silêncio em narrativa – com caneta, com voz ou com silício – a literatura seguirá em movimento, desafiando qualquer algoritmo a acompanhar o fôlego da imaginação humana.
Quem não aprende a usar as novas ferramentas acaba sendo usado por elas — ou esquecido