Não é verdade que não tens histórias
Se sentes que não tens histórias para contar, que não sabes como contá-las ou, pior ainda, que não és criativo, deixa-me ser claro desde o início: nenhuma dessas ideias é verdadeira. Não passam de narrativas internas – sim, histórias – que repetes a ti mesmo sem perceber que te impedem de descobrir a tua própria voz. A verdade é que és criativo simplesmente por existires. O que talvez ainda não tenhas feito é encontrar a forma que melhor exprime a tua criatividade.
A criatividade não é um dom reservado a alguns. Não é uma habilidade mágica transmitida por linhagem misteriosa. É, antes, uma consequência da experiência humana. Vivemos, sentimos, erramos, vencemos, perdemos – e tudo isso gera histórias. A tua vida, com todos os seus detalhes banais ou extraordinários, é um repositório ininterrupto de narrativas. Tens milhares delas. Não precisas inventar. Precisas apenas reconhecer.
O problema, muitas vezes, é de perceção. Foste ensinado a pensar que uma história só é válida se tiver estrutura épica, personagens mirabolantes, reviravoltas dramáticas. Mas a verdade literária – e humana – é bem mais simples: uma boa história é aquela que revela uma transformação. Pode ser breve. Pode ser silenciosa. Pode até ser vergonhosa. Desde que haja conflito, mudança e uma centelha de verdade, tens tudo o que precisas.
Pensa, por exemplo, na última vez que tomaste uma decisão difícil. Talvez tenhas despedido alguém. Ou perdoado um erro. Talvez tenhas ficado calado quando querias gritar. Esses momentos, se bem explorados, são histórias poderosas. A dificuldade está em reconhecê-los como tal.
O primeiro passo, portanto, não é escrever. É observar. É lembrar. É olhar para o quotidiano com olhos narrativos. Há histórias nos silêncios entre duas pessoas à mesa. Há histórias na espera por um telefonema que nunca chegou. Há histórias no olhar do teu filho ao descobrir que o mundo pode ser injusto.
Depois vem o segundo passo: contá-las. E aqui entra outro mito: “não sei contar histórias”. Ora, ninguém nasce a saber. Contar histórias é uma habilidade que se aprende, como tocar piano ou falar uma nova língua. Exige escuta, treino e reescrita. Exige humildade para ver que aquilo que escreveste pode ainda não dizer o que pretendes. E, sobretudo, exige coragem: coragem para não esconder o que sentiste, para não suavizar o que doeu, para não transformar tudo numa lição de moral.
O storytelling não é um talento divino. É uma técnica, uma prática, uma disciplina. E começa no momento em que aceitas que já tens o material necessário. Tudo o que te aconteceu – o bom, o ridículo, o trágico, o aparentemente irrelevante – é matéria-prima. Cabe-te escolher qual dessas memórias é mais urgente de ser contada agora. E trabalhá-la, com rigor e verdade, até que se torne uma ponte entre ti e o outro.
Se sentes que não tens histórias, talvez estejas apenas a olhar para a tua vida com os olhos errados. Troca-os. A tua história está aí, viva, à espera. O que ainda te falta é descobri-la. E isso, sim, é possível. Porque contar histórias pode ser aprendido. E mais do que isso: é uma forma de te reconheceres. Começa por aí.
A criatividade já está em ti
A maioria das pessoas que se julga “sem criatividade” não está a dizer a verdade – está a repetir um julgamento que lhe foi imposto em algum momento da vida. Talvez um professor que disse que o teu desenho estava errado. Talvez um familiar que comentou que “tens mais jeito para números”. A origem pouco importa agora. O essencial é compreender que a criatividade não é um privilégio: é um direito humano.
Somos criativos por natureza. A própria linguagem é uma manifestação criativa. Quando recontas o que te aconteceu ontem, já estás a escolher o que destacar, o que omitir, que tom dar à tua narrativa. Isso é construir uma história. E fazer isso de forma consciente é um treino, não um milagre.
A questão não é saber se és criativo. É descobrir como essa criatividade se expressa melhor em ti. Há quem a encontre no texto. Outros, na dança, no desenho, na culinária, na organização de ideias. Se ainda não reconheces a tua forma, talvez nunca tenhas sido incentivado a procurá-la.
Começa por abandonar a ideia de que criatividade tem de ser grandiosa. O hábito de esperar por uma ideia genial é o que mata a maioria dos processos criativos antes mesmo que comecem. A criatividade autêntica não começa com uma epifania – começa com uma pequena tentativa. Um gesto imperfeito. Uma frase mal construída. Uma imagem borrada. Mas é nesse fazer que o caminho se revela.
Pega num caderno velho ou num ficheiro novo no computador. Não te preocupes com o título, com o início brilhante, com a originalidade. Escreve uma cena real, tua. De preferência, uma memória de desconforto: uma despedida mal resolvida, uma decisão errada, uma sensação de inadequação. Não expliques nada ao leitor. Mostra. Permite que ele veja o que viste, ouça o que ouviste. Essa é a base do storytelling: criar imagens mentais que permitam ao outro sentir.
Durante esse exercício, é possível que te sintas ridículo. “Quem vai querer ler isto?” — é o pensamento mais comum. Mas atenção: essa voz não é a tua. É o resíduo de anos de comparação, crítica e censura. Aprende a silenciá-la, nem que seja durante quinze minutos por dia. Só assim a tua criatividade terá espaço para respirar.
Com o tempo, vais notar que as ideias começam a surgir. O que antes parecia banal, começa a ganhar profundidade. Um momento em que te sentiste ignorado transforma-se numa metáfora poderosa. Uma viagem que não correu como esperado vira o pano de fundo para um conto a respeito de controle e aceitação. E assim a tua vida, pouco a pouco, revela-se como o solo fértil que sempre foi.
É importante lembrar: criatividade não é ausência de esforço. Pelo contrário, exige disciplina, reescrita e desconstrução. Mas não é fria nem metódica. É, antes, um reencontro. Com a tua voz. Com a tua visão do mundo. Com aquilo que, mesmo sem saber, queres partilhar.
Por isso, se ainda não encontraste a tua expressão criativa, o problema não é falta de talento. É falta de exploração. Testa. Fracassa. Testa outra vez. O que hoje parece estranho, amanhã será familiar. O que hoje soa forçado, depois será natural. Mas nada disso acontecerá enquanto esperares sentir-te “pronto”.
A criatividade, como o músculo, cresce com uso. E tu já tens tudo o que é preciso para começar. Falta apenas o compromisso de persistir.
Aprende a dar feedback a ti mesmo
Nenhum escritor, contador de histórias ou criador nasce pronto. O que diferencia os que evoluem dos que desistem é a capacidade de olhar para o próprio trabalho com lucidez – sem vaidade, sem piedade. O nome disso é autocrítica estruturada. E sim, isso também se aprende.
A maioria das pessoas escreve como quem desabafa: coloca no papel uma emoção, uma lembrança, uma ideia, e sente alívio por “ter dito”. Mas escrever bem vai além de dizer. É preciso saber o que ficou por dizer. E isso só se descobre relendo com atenção clínica e distanciamento emocional.
O primeiro passo é simples, mas subestimado: deixa o texto descansar. Não o releias logo após terminar. Dá-lhe 24 horas, no mínimo. Volta a ele com olhos de leitor, não de autor. Imprime, se puderes. Lê em voz alta. A sonoridade revela falhas que os olhos não notam: frases longas demais, repetições disfarçadas, pausas mal colocadas.
Depois, começa a revisão com perguntas rigorosas. Há uma estrutura? Existe uma transformação clara entre o início e o fim? A emoção que querias transmitir está a ser sentida pelo leitor – ou apenas por ti? Evitaste explicar sentimentos (“ele estava triste”) e optaste por mostrar comportamentos (“ficou em silêncio, com os olhos fixos no chão”)?
A seguir, avalia o ritmo. Um bom texto alterna momentos de tensão e alívio, frases curtas e longas, imagens rápidas e descrições pausadas. O texto soa musical? Ou é monótono, repetitivo, sem pulso? A sonoridade de uma frase pode reforçar (ou matar) a emoção que tentas provocar.
Mais ainda: questiona a honestidade da tua escrita. Estás a tentar impressionar com palavras complicadas? Estás a suavizar uma emoção para não pareceres “exagerado”? Estás a esconder a parte desconfortável da história por medo do julgamento? Se sim, volta atrás. A força de uma história está na vulnerabilidade e na verdade — não na perfeição.
Se quiseres evoluir de facto, cria o hábito de anotar comentários ao lado do teu próprio texto. Marca onde hesitaste. Onde o ritmo falhou. Onde o diálogo soou artificial. Onde repetiste uma ideia. Aonde o final chegou demasiado cedo – ou tarde demais. Esse tipo de análise não mata a criatividade; ela educa-a.
Por fim, uma técnica essencial: reescrever sem apego. A primeira versão é apenas matéria-prima. Reescrever não é trair o impulso original — é lapidá-lo até que cumpra o seu propósito. Muitas vezes, cortar 30% de um texto é o melhor que podes fazer por ele. O supérfluo confunde. O excesso distrai. A clareza emociona.
Lembra-te: o objetivo não é que o leitor diga “que bonito”, mas que pense “isso é verdade”. A beleza é um efeito colateral da verdade emocional.
Aprender a dar feedback a ti mesmo não significa tornar-te imune à crítica externa — mas significa que, quando ela vier, já terás enfrentado o mais exigente dos leitores: tu. E esse treino, contínuo, silencioso, duro, é o que transforma o simples escrever em verdadeiro ofício.
Agora, volta ao teu texto. Relê com olhos novos. Corrige com coragem. E reescreve, se for preciso, com a humildade de quem sabe que a próxima versão será melhor. Porque será. Se persistires.
Bom trabalho!
Tens certeza de que não sabes contar histórias?