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Trump & Storytelling: a América em um ciclo de retorno à narrativa do herói salvacionista

Em 20 de janeiro, Donald Trump voltou à presidência dos Estados Unidos, inaugurando um segundo mandato que, para muitos, parecia improvável há poucos anos. Seu retorno, porém, não é apenas um facto político; é um fenómeno cultural e narrativo que ilustra tanto o poder magnético do storytelling na política quanto os perigos intrínsecos de uma liderança que transforma um país em palco de culto à personalidade.

Trump é mais do que um político; ele é um arquétipo. Para seus seguidores, ele encarna a figura do salvador, um homem que desafia elites corruptas, rejeita os dogmas do "politicamente correto" e promete devolver à América uma grandeza perdida. Essa narrativa poderosa, que já havia conquistado sua primeira vitória em 2016, retorna agora mais lapidada, mais polarizadora e com desafios ainda mais profundos. Contudo, para além da euforia de seus partidários e do desespero de seus opositores, há algo mais fundamental em jogo: uma reflexão sobre os perigos de uma sociedade que confunde líderes com messias e políticas públicas com promessas de redenção.

A chave para entender Trump não está apenas em sua retórica ou nas políticas que implementa, mas na maneira como ele conta uma história. Desde o início de sua ascensão política, ele soube capturar o espírito de um tempo em que as pessoas, sentindo-se desamparadas pelas instituições, buscavam uma figura que pudesse simbolizar a luta contra um sistema visto como opressor. Trump apresentou-se como o escolhido, o único que poderia resistir a forças que ele definiu com clareza brutal: a mídia, os globalistas, os imigrantes e até mesmo a própria máquina política americana. Era uma luta entre "nós" e "eles", e ele prometeu ser o campeão do "nós".

Essa narrativa ressoou profundamente, mas sua simplicidade também era sua fraqueza. Uma América dividida em vilões e heróis, em vencedores e perdedores, é uma América destinada a permanecer cativa de conflitos intermináveis. A questão nunca foi apenas se Trump cumpriria suas promessas – mas até que ponto essa história unidimensional poderia resistir à complexidade da realidade.

O que torna sua nova presidência tão carregada de incertezas é justamente o contexto em que ela ocorre. O mundo mudou, e os Estados Unidos enfrentam crises que exigem respostas sofisticadas. As consequências da pandemia de COVID-19, as divisões sociais exacerbadas por anos de polarização política e a perda de prestígio global são questões que não podem ser solucionadas apenas com slogans ou retórica inflamável. No entanto, Trump retorna com a mesma estratégia que o levou ao poder: reduzir problemas sistémicos a batalhas pessoais e transformar o debate público em um espectáculo.

O perigo dessa abordagem não é apenas político, mas cultural. Quando líderes políticos tornam-se figuras quase religiosas, a capacidade de uma nação de se auto-corrigir fica comprometida. Trump representa mais do que uma ideologia; ele é o epicentro de um movimento que parece estar mais interessado em lealdade do que em crítica, mais comprometido com a adoração de um líder do que com a busca de soluções práticas. Esse fenómeno não é exclusivo de Trump. Ao longo da história, figuras carismáticas têm frequentemente atraído massas com promessas de redenção, apenas para deixar para trás sociedades mais divididas e vulneráveis. A lição que se repete, porém, é que o culto à personalidade não é sustentável. Quando a narrativa se torna maior do que a realidade, a realidade invariavelmente impõe seus limites.

Para seus críticos, o retorno de Trump é um alerta sobre os perigos de permitir que uma democracia seja reduzida ao teatro de um homem só. Mas para seus seguidores, é uma segunda chance de completar o que eles veem como uma revolução interrompida. Essa dualidade apenas aprofunda as linhas de fractura na sociedade americana, tornando mais difícil imaginar um futuro que não seja definido por constantes ciclos de antagonismo.

Há, contudo, uma responsabilidade que vai além de Trump. A necessidade de heróis salvacionistas é, muitas vezes, um sintoma de instituições falidas ou enfraquecidas. Quando governos, partidos políticos e outras estruturas sociais não conseguem responder às necessidades e ansiedades das pessoas, estas recorrem àquilo que parece mais tangível: um líder que diz entender sua dor e promete resolvê-la de forma rápida e definitiva. É uma solução sedutora, mas perigosamente superficial.

Trump compreendeu essa dinâmica e a usou com habilidade. Ele é, em muitos aspectos, um espelho das falhas da democracia americana. Sua ascensão não teria sido possível sem a desilusão crescente de uma grande parte da população, sem o impacto da desigualdade económica e sem o esgotamento da fé nas instituições. Mas, ao personalizar essas lutas, ele criou uma narrativa em que o destino da nação está irrevogavelmente ligado ao seu próprio.

Essa fusão entre líder e nação é precisamente o que torna seu segundo mandato tão arriscado. Quando tudo gira em torno de uma única figura, as instituições tornam-se vulneráveis. Um presidente que se apresenta como o salvador inevitavelmente enfraquece os mecanismos de controle e equilíbrio que existem para proteger a democracia de si mesma. E quando as massas aceitam essa premissa – seja por fé, medo ou conveniência –, o preço é pago em liberdade, pluralismo e estabilidade.

A nova presidência de Trump, portanto, não é apenas um teste para ele; é um teste para os próprios Estados Unidos. Será que a narrativa pode evoluir? Será que a sociedade americana pode resistir à tentação de abraçar soluções fáceis para problemas difíceis? Ou estamos destinados a um novo ciclo de promessas grandiosas seguidas por desilusões profundas?

O perigo de cultos à personalidade – sejam eles políticos, religiosos ou culturais – é que eles invariavelmente pedem mais do que devolvem. Eles consomem o espaço para o debate, sufocam a inovação e substituem a colaboração pela lealdade cega. E quando a história finalmente chega ao fim, resta apenas a difícil tarefa de reconstruir o que foi abandonado em nome da fé em um salvador.

Se Trump é o herói ou o vilão dessa narrativa depende, como sempre, de quem está contando a história. Mas o que é inegável é que ele voltou ao palco, e a América novamente o acompanha. Para os espectadores dessa nova era, o desafio será não apenas ouvir a história que está sendo contada, mas também lembrar que o verdadeiro poder de uma democracia está em suas pessoas, não em seus narradores.

Essa tendência de líderes salvacionistas, porém, não é exclusiva dos Estados Unidos e da figura de Donald Trump. Em diferentes partes do mundo, movimentos políticos têm se estruturado em torno de personagens carismáticos que prometem resolver crises nacionais através de força de vontade pessoal, desafiando instituições estabelecidas e polarizando sociedades. Da América Latina à Europa, da Ásia ao Oriente Médio, a narrativa do herói salvador tem encontrado terreno fértil em tempos de incerteza, desigualdade económica e desconfiança nas instituições democráticas.

Na América Latina, um continente historicamente marcado por figuras populistas, a narrativa salvacionista parece uma constante na política. No Brasil, por exemplo, Jair Bolsonaro seguiu um caminho semelhante ao de Trump, moldando-se como um outsider antissistema que prometia “limpar” a política brasileira após os escândalos de corrupção que dominaram o país durante anos. Bolsonaro construiu sua identidade política em torno de uma retórica divisiva, onde se apresentava como o defensor da ordem, da moralidade e dos valores tradicionais. Assim como Trump, sua narrativa polarizou o país e construiu um culto à personalidade que transcendeu políticas concretas, tornando sua figura mais relevante do que qualquer programa de governo. Mesmo fora do poder, Bolsonaro mantém uma base fiel, e seu possível retorno, como o de Trump, apresenta os mesmos riscos: o fortalecimento de divisões sociais e a dependência de promessas grandiosas, mas vazias de sustentação prática.

Na Europa, a narrativa salvacionista também encontrou eco, embora adaptada a contextos políticos distintos. Na Hungria, Viktor Orbán consolidou um modelo de governo que combina nacionalismo extremo, controle da mídia e ataques às instituições democráticas. Orbán apresentou-se como o guardião da “Hungria cristã” contra a imigração e as influências culturais estrangeiras, alimentando um discurso que antagoniza Bruxelas e reforça a soberania nacional como eixo central. Sua abordagem segue o manual do herói salvacionista: identificar inimigos externos, reforçar a ideia de uma nação sob ataque e prometer proteção incondicional à população. O perigo, no caso de Orbán, reside na corrosão das instituições democráticas, que têm sido progressivamente enfraquecidas por reformas que centralizam o poder em suas mãos. Em vez de ser apenas um líder, Orbán tornou-se a própria personificação do Estado, um fenómeno perigoso que ecoa em outros países com líderes de perfil semelhante.

A Rússia, sob Vladimir Putin, representa talvez o caso mais extremo de como a narrativa salvacionista pode se transformar em um regime autoritário consolidado. Putin posicionou-se como o líder que restaurou a dignidade da Rússia após o colapso da União Soviética, capitalizando sobre os sentimentos de humilhação e perda nacional que marcaram os anos 1990. A ideia de que apenas ele pode proteger a Rússia de seus inimigos – tanto internos quanto externos – tornou-se uma justificação para a concentração de poder, o silenciamento de opositores e intervenções militares que reforçam sua narrativa de força. A guerra na Ucrânia, por exemplo, é apresentada ao povo russo como uma missão quase messiânica para defender a pátria e os valores russos contra um Ocidente hostil e decadente. Sob esse prisma, Putin não é apenas um líder político, mas um herói cultural, um salvador histórico que não pode ser substituído sem que a própria identidade russa seja questionada.

Na Ásia, figuras como Narendra Modi, na Índia, oferecem outra camada a esse fenómeno. Modi ascendeu como um líder que prometia romper com as burocracias e corrupção associadas ao Congresso Nacional Indiano, posicionando-se como um defensor do orgulho hindu e da modernidade económica. Sua capacidade de combinar tecnologia e tradição, apelando tanto a jovens urbanos quanto a conservadores rurais, fortaleceu sua narrativa como o homem certo para conduzir a Índia a uma nova era de prosperidade e auto-afirmação global. No entanto, essa narrativa também tem um custo: a erosão do secularismo que definiu a identidade indiana por décadas e o aumento das tensões religiosas, exacerbadas por políticas que favorecem a maioria hindu. Como outros líderes salvacionistas, Modi governa sob a lógica de que seus seguidores devem permanecer leais à figura do líder, muitas vezes à custa do pluralismo democrático.

Até mesmo em democracias consolidadas, como a Itália, líderes como Giorgia Meloni vêm utilizando narrativas similares, adaptadas ao contexto local. Meloni apresenta-se como uma defensora da identidade italiana e europeia contra a globalização descontrolada, a imigração e as imposições de Bruxelas. Seu discurso apela ao sentimento de perda cultural, oferecendo uma visão de recuperação nacional que a posiciona como uma salvadora em tempos de desorientação política.

O que esses líderes têm em comum, independentemente do contexto geopolítico, é a habilidade de transformar crises reais ou percebidas em narrativas épicas, nas quais se colocam como a solução singular e indispensável. Contudo, essa abordagem apresenta riscos profundos, tanto para as democracias quanto para as sociedades que eles governam. Quando líderes se tornam indispensáveis, instituições são enfraquecidas. Quando nações são divididas entre “nós” e “eles”, a polarização paralisa o debate e torna as sociedades menos resilientes. Quando as promessas se baseiam mais na imaginação do que na prática, as expectativas inevitavelmente entram em colisão com a realidade.

Há, portanto, uma lição global a ser aprendida sobre o fascínio por salvadores políticos. Em tempos de incerteza, o apelo por líderes que oferecem respostas simples a problemas complexos é compreensível, mas perigoso. Em última instância, os salvacionistas não oferecem soluções; oferecem histórias – e, como em qualquer boa história, há sempre uma dose de ficção. À medida que o mundo observa figuras como Trump, Bolsonaro, Orbán, Putin e Modi, é essencial questionar as narrativas que eles constroem e lembrar que nenhuma democracia deve depender de um único protagonista. A verdadeira força das sociedades está na diversidade de vozes, na robustez das instituições e na capacidade de resistir à tentação de buscar heróis em detrimento de sistemas.

O que une os heróis salvacionistas, de Trump a Bolsonaro, de Orbán a Modi, é a promessa de redenção imediata, de resgatar uma glória perdida ou proteger uma identidade ameaçada. Eles oferecem histórias simples para mundos cada vez mais complexos, desenham vilões claros onde há apenas caos e convidam as massas a depositar sua fé na narrativa de um único protagonista. Mas o poder desses contos de salvação não está no líder que os proclama, e sim no vazio que os precede — o vácuo deixado por instituições que falharam, por desigualdades que se avolumaram e por sociedades que esqueceram de dialogar consigo mesmas. No entanto, como toda história, estas também chegarão ao seu fim. E quando o palco se esvaziar e o eco dos aplausos finalmente cessar, restará uma pergunta incontornável: o que fazemos, como povo, quando a ilusão do salvador desmorona e percebemos que os verdadeiros heróis da história éramos nós o tempo todo?


JAMES MCSILL 24 de janeiro de 2025
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